segunda-feira, 17 de julho de 2023

Manhã de 6ª f. passada

 
A manhã vai a meio,
a chuva continuada faz-se ouvir na vidraça
e também de vez em quando um avião
que segue em linha para Heathrow.
Sobre a mesa,
a caneca com café quente 
e o pratinho de panquecas 
de farinha de grão de bico,
gostosas e cheirosas,
oferecidas pela vizinha judia.
Também o livro com marcador 
no meio da história 
e um croissant num saquinho para
quando a menina chegar da escola.
Como é 6a f, ela sai às três da tarde.
Quando chegar a casa,
tirará o capacete cor de rosa 
que sempre usa
quando vai e vem de scooter,
percorrendo o parque, onde rosas e mais rosas se abrem,
e logo depois a rua comprida e multicultural,
onde há lojas e mais lojas
de todos os alfabetos e origens,
de todas as utilidades,
de muitas inutilidades,
de sabores, cheiros e odores.
 
Um sem abrigo vive o dia numa esquina,
olhando sempre para ambos os lados,
como à espera de um godot qualquer.
Depois de levar a filha à escola, 
e para ganhar tempo,
porque poucas horas depois
são horas de ir buscá-la,
a mãe acelera o trabalho no computador;
a avó respira o sossego da casa,
olhando as árvores quietas lá fora,
por onde passa uma chuva miúda,
deixando gotas em suspenso,
e pergunta-se se merece
esta calma alegria,
sentindo em si 
pingar pingos frios
de persistentes culpabilidades antigas,
que vai tentando abandonar 
por caminhos dos dias.
E os dias agora vividos
são de menos mobilidade
pela operação urgente
ao apêndice,
um dia depois da chegada a Londres;
sem poder entrar mais na cidade
que também aprendeu a amar,
talvez por lá viver uma das duas mais belas partes
que nasceram de si.
Ah! E a orquídea da casa,
com as raízes antigas em vaso/baldinho que já brincou na praia,
continua, no seu silêncio tranquilo, a florir.
 

 

10 comentários:

  1. Muito bem. Gostei deste diálogo. Obrigada pela partilha!
    .
    É preciso acreditar...
    .
    Beijos, e uma otima semana!

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  2. Respostas
    1. Sempre elogioso e simpático. Que bom.
      Que o fim de tarde traga muita poesia.

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  3. Que serenidade respira este texto. É todo ele feito de serena aceitação. Com que então uma operação ao apêndice. Que coisa. Vai uma pessoa para Londres ver a família e zás, ingressa no hospital. Mas que fazer? A doença não escolhe hora (ou escolhe, sabe-se lá). Desejo-lhe rápida recuperação. Estar em casa da filha pode ser sorte e ajudar a recuperar com mais segurança. Meia cura vem-nos do carinho com que os outros nos tratam, não é mesmo?
    Se é história inventada, olhe, está mesmo bem, tudo nela parece verdade.

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    1. Não, Bea, nada inventado. Nada mesmo. Se calhar, por ter sido apanhada de surpresa (felizmente nunca tinha estado internada em parte alguma) e ter sido tudo tão rápido, nem cheguei a desanimar nem a esmiuçar muito o azar.
      Na semana que pensava sobretudo ajudar a minha filha, acabei por ser ajudada por ela. E, parece esquisito dizê-lo, mas este incidente trouxe-me momentos bons. Não as dores, é claro!
      Certo pode ser ter planos, poder cumpri-los é que é mais incerto.
      Um abracinho, Bea, e bom fim de tarde.

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    2. O homem põe e Deus dispõe - Deus ou o que chamem à interferência.
      O que interessa é que já se sinta bem. E é verdade que nenhum mal é inteiro e há bens que nos vêm por ele.
      Quanto aos planos, é igual; por vezes são como castelo de nuvens que o vento desfaz. Planificamos no ideal e a vida acontece noutra secção:). Em contrapartida, também nos surgem inesperados que ajudam ao caminho. O ter e o haver variam qb em cada humano. Mas, as pequenas alegrias são para sempre, repetem-se e, por norma, são grátis. E há a grande, a infinita beleza do mundo.
      Boa recuperação, o apêndice não faz falta nenhuma:). Deixe-o ser inglês naturalizado. E acabou.

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    3. Bom dia, Bea. Que bela reflexão para começar o dia. E a qualquer hora, é claro.
      Um abracinho e um dia belo também.

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  4. Gostei muito de a ler Maria Dolores, como uma entrada no seu diário, que não sei se pratica. Em primeiro lugar desejo sincero de rápido restabelecimento, embora a cirurgia seja considerada das mais simples, por vezes traz complicações, mas não há-de ser o caso. O que achou do SNS de sua majestade ou da clinica privada? Foi bem tratada?

    Nunca provei panquecas de farinha de grão de bico, os meus breakfasts resumem-se a torradas com café com leite se em casa e ovos mexidos (adoro) com bacon quando em hotéis. Sempre com café.

    A menina vem de scooter? Agarradinha à mãe? Explique lá isso s.f.f. Aqui onde moro tenho visto uma mãe com bicicleta elétrica com duas cadeirinhas acopladas levar as duas filhas. É um espetáculo de se ver, todo o mundo pára e ela segue toda lampeira!

    Que bom respirar o sossego da casa aproveitando a calma alegria. Alegria breve, como diria o meu querido Vergílio Ferreira.

    Fala em rosas. Quando fui a Londres visitei o Queen Mary's Rose Gardens. É esse?

    Tudo de bom para si e família e grato pela partilha.

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    1. Também gostei muito de o ler, Joaquim. Às vezes escrevo no diário, mas, como não sou muito disciplinada, é só de vez em quando.
      Em tempos, cheguei a escrever aqui o 'Diário de Mariana', uma adolescente que contava, de forma um tanto ficcionada, o seu dia a dia. Juntava-lhe muita coisa que eu ia observando. Qualquer dia, retomo-o.
      Sim, para já, as coisas estão a correr normalmente. Não posso é pegar em pesos durante umas semanas.
      Fui a um hospital público - UCL Hospital - e gostei muito. Muito profissionais, simpáticos e boas as instalações (também é recente o hospital).
      Não sei ainda é quanto vou pagar, porque o meu cartão europeu de saúde estava caducado, infelizmente. Quem viaja deve, de facto, tê-lo atualizado. É gratuito e passado pelo SNS.
      Também nunca tinha provado farinha de grão de bico, mas quero comprar. Parece ser mais saudável do que a farinha de trigo e o resultado é na mesma bom. Sim, uns ovinhos com café também sabem muito bem.
      A minha neta usa muito a scooter. Lá chamam-lhe assim, mas é a nossa trotinete e não veículo a motor. Ela ainda não fez oito anos.
      Também gosto de ver os pais a passear com as suas crianças. Penso sempre no poema de António Gedeão (se não me engano) em que 'Leonoreta vai de lambreta'.
      Para além de várias ajudas que tive, felizmente, o sossego da casa foi muito bom e poder organizar o que eu podia para o bem-estar da família também.
      Conheço esse belo jardim de que fala. Este é mais pequeno, e, nesta época, as rosas e outras flores estão lá com toda a força.
      Tudo de bom também para si, Joaquim. Bom fim de tarde.


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