quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Bye, Mr Félix

         (...)

Quando entrei no museu, tudo me pareceu simpático, porque as pessoas que lá encontrei também eram amáveis. Apercebi-me de que há sempre uma exposição temporária bem documentada e reparei na cafetaria, grande e luminosa, espaço que habitualmente também procuro quando vou a um museu. Dando para um vasto jardim, consolava o olhar, porque, apesar de pouco tratado, nele cresciam árvores e flores espontâneas com as cores naturais da estação, neste caso, do outono.

Muitos dos visitantes do Centro deviam ser pessoas locais que lá convergiam para workshops ou outras atividades; na cafetaria, havia muito espaço mas pouca gente: um sítio cheio de luz natural, bom para ler, para usar o computador, para além de saborear boas saladas, a sopa do dia, fatias de quiche, tartes...

Tudo isto vi eu, depois de entrar no museu que eu não conhecia, mas que, ao descobri-lo no mapa, me despertara logo curiosidade. Como uma casa na qual apetece entrar, prevendo que, ao sair dela, a alma volta enriquecida com o encontro de alguma coisa ou alguém.

Vagarosamente, visitei a exposição do primeiro andar e depois aproveitei para almoçar na cafetaria, desfrutando da luminosidade aberta e do largo jardim. E da calma que parecia estar ali naturalmente plantada, à disposição de cada um.

Tirei o casaco, sentei-me, abri a carteira e peguei no livro que andava a ler. Foi quando ouvi um ruído surdo de um telemóvel que pertencia a um homem de meia idade, de porte alto, de mãos fortes, mas cujo rosto não cheguei a ver porque saiu da cafetaria, assim que atendeu o telefone, falando em voz baixa. Mesmo assim, apercebi-me de que tinha traços da construção de Félix, a minha personagem, mas não reparei muito bem em todas as semelhanças e diferenças, porque o homem se afastou da cafetaria e, no meu  habitual e divertido jogo, disse para mim mais uma vez: bye, Mr Félix, e voltei à leitura.

Por esses dias, eu andava a ler o livro de contos de Lucia Berlin, Manual para mulheres de limpeza. Fascinavam-me aquelas histórias, de cariz autobiográfico, tão cruas e tão humanas, passadas nos Estados Unidos, e contadas com tal vivacidade de linguagem que me prendiam e me levavam até à Califórnia onde a autora e narradora lutara pela vida, agarrando-a com toda a força para vencer a doença, a penúria de dinheiro, a falta de afeto na infância e juventude, etc. Interessava-me perscrutar também tantas outras pessoas que a rodeavam e que, tal como ela, tanto subiam escadas para chegar a algum patamar de sucesso como logo as desciam aos tropeções. Para além de tudo, lendo aqueles contos, fascinava-me o gosto pela escrita, pela arte, pela livre natureza, pela verdade da essência humana que aquelas personagens me transmitiam.

Logo que eu começava a ler uma narrativa, tinha vontade de levar a sua leitura até ao fim. Esse deslumbramento criava em mim um estádio de franca felicidade, acrescida da possibilidade de, na altura, poder viajar e permanecer mais longamente nos sítios escolhidos, dando-me ao luxo de os mapear e definir a distribuição do meu próprio tempo.

Por isso, fui ficando na cafetaria do museu e julgo que me esqueci das horas, porque me entreguei à leitura daquelas histórias e só tirava os olhos do livro quando me lembrava que, perto de mim, havia um jardim encantatório e que merecia ser olhado demoradamente naquela tarde cinzenta e um pouco fria de outono. Eu, que tanto gosto de observar as pessoas que estão próximas de mim, quase as esqueci durante algum tempo, imersa que estava nas páginas do livro.

Mas, como senti sede, fechei o livro, pedi água e olhei à minha volta. 

(Amanhã, voltarei. Terei visto Mr Félix?) 

 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Bye, Mr Félix!

 

Eu tinha escrito há pouco uma história em que entrava a personagem de Félix, um homem de meia idade, de porte largo e alto, cabelo forte, mãos possantes e sorriso generoso. Ainda a personagem parecia viver dentro de mim, fui passar uns dias a Londres.

Talvez por ter pensado durante bastante tempo na construção dessa figura, de quando em vez, nos mais variados lugares por onde eu ia passando, deparava com pessoas que se assemelhavam a Félix. Achava natural que assim fosse, estivesse eu onde estivesse, porque as personagens que criamos têm sempre um fundo de verosimilhança humana, logo, tal podia facilmente acontecer. Por isso, durante a minha estada em Londres, não era raro eu ir na rua ou entrar em qualquer outro sítio público e deparar com um homem com os mesmos traços que defini para Félix. Quando uma determinada pessoa, que me parecia revelar traços do "meu" Félix, se afastava, eu sorria para mim e também para mim dizia: Bye, Mr Félix.

Como gosto dos arredores calmos das cidades, numa manhã, apanhei o metro e fui até Camden, mas não fiquei pelo centro mais cosmopolita e movimentado, preferi caminhar pelas ruas menos frequentadas, ver pessoas que davam sinais de morarem naqueles lugares; ou porque transportavam sacos de compras, ou porque estavam a conversar com vizinhos, ou porque passeavam os cães, ou porque empurravam carrinhos de bebé como se viessem dos infantários e regressassem a casa... Assim, fico a conhecer melhor a vida real à volta das cidades e não apenas a que pulula no centro urbano mais procurado.

Dado que o tempo estava cinzento e fresco, resolvi caminhar e ir até ao Camden Ars Centre, um pequeno centro de arte, em Hampstead, cuja imagem tinha visto no mapa e que logo me atraíra. Vi que era um edifício antigo, não muito grande e cujas tonalidades acastanhadas das paredes exteriores se enquadravam no espírito do lugar.

Sim, fui até lá.

(Amanhã, continuo a contar. Oxalá voltem).

domingo, 9 de janeiro de 2022

Vulgaridades

 

Depois de bastantes semanas de tempo apressadamente contado, hoje, finalmente, podia ter uma tarde de domingo quase  só para mim.

O dia acordou cinzento e baço. A chuva miúda quase nunca parou até agora. Como um orvalho espesso e persistente que molhava tudo e todos. 

Já não sou de sair muito, mas com este tempo e com a bicharada que anda no ar que também respiramos, era mesmo de ficar em casa.

 Podia ler porque não o faço há tempos. Podia ver o Expresso desta semana. Para além de outras temas, estou curiosa de ler a crónica de RAP, tão publicitada e anunciada. Podia fazer tanta coisa, mas... fui passar a ferro. 

Apetecia-me reduzir o monte de lençóis e toalhas, alisando-os, dobrando-os, separando-os para mais facilmente voltarem para as respetivas gavetas. Às vezes, organizar os espaços ou reduzir o amontoado de coisas domésticas por fazer também me arruma a mente. 

Liguei o ferro. E, enquanto aquecia, liguei o rádio também, pensando nas minhas vulgaridades.

Se fosse mais intelectual ou sofisticada, não passaria uma boa parte de tarde de domingo mais livre e sossegado, ainda que húmido, a passar roupa a ferro, fazendo-o por opção e com gosto.

Ah, ia ouvindo rádio, na antena 2. Com boa dicção e pausadamente, falavam de Jean-Baptiste Poquelin, o ilustre dramaturgo Molière (Paris, 1622/1673). Se não optasse por passar a ferro, se calhar não tinha ouvido falar das suas peças mais conhecidas, como 'O doente imaginário' (Le malade imaginaire), 'O avarento' (L'avare), etc. E da sua vida que terminou no palco, enquanto representava, precisamente, 'Le malade imaginaire'.

Ser comum ser humano tem as suas vantagens, mas ter bons programas de rádio por perto também. Seja ele domingo ou outro dia da semana.

 

sábado, 8 de janeiro de 2022

Flores novas vs flores velhas

 

A menina gostava muito de flores. Talvez por influência da família. E, desde muito pequena, habituou-se a olhar para elas e a observá-las ao pormenor. A vontade de as colher foi também crescendo. Queria fazê-lo em qualquer sítio onde as visse bem viçosas: na rua, em casas vizinhas, na casa antiga da bisavó... 

Porém, a mãe foi-lhe explicando que não podia cortar as flores dos parques ou jardins, públicos ou privados. Tinha de as deixar crescer e viver por mais tempo. Toda a gente gostava e tinha o direito de ver espaços bonitos e floridos. A menina demorou algum tempo a compreender e a aceitar, mas foi aprendendo que não o devia fazer.

Porém, foi ganhando outro hábito: apanhar flores velhas e murchas, como as camélias que são efémeras nas árvores e, caindo com abundância, formam tapetes à volta dos troncos. Essas eram as preferidas da menina. Uma vez, a mãe disse-lhe:

- Não apanhes essas flores. Não vês que estão velhas e deixaram de ser bonitas?

A menina, que já tinha apanhado umas poucas, bastante desbotadas e de pétalas menos firmes, continuava a segurá-las na mãozinha pequenina e delicada. Como a mãe insistia, a menina voltou-se para ela e disse:

- Mamã, deixaste de gostar da bisavó por ela ser velhinha e já não ser tão bonita?


quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Conversa telefónica com vacina dentro

 

- Então, a menina já tomou a vacina?

- Sim, a primeira dose já está.

- Custou-lhe muito? Chorou?

- Nada disso. Adorou.

- Como assim?

- Era uma animação: uma senhora a fazer bolas de sabão, um mágico com truques engraçados,  pipocas para os meninos que quisessem...

- Que bom, acho muito bem. Parece primeiro mundo. 

- Até os pais saíam mais sorridentes do Multiusos.

- Quem meus filhos anima vacina infantil adoça!

 

 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Fica tanto por saber!

Há dias, uma amiga minha pediu-me se revia o jornal eletrónico de um agrupamento de escolas de diferentes ciclos. Já estou afastada há um par de anos, mas, confesso, que, nestes momentos, sinto saudades. Não da burocracia sempre crescente,  mas das atividades em que os alunos eram e são os protagonistas, com a ajuda do trabalho e cumplicidade dos professores. E são tantas as atividades que se realizam nas escolas. E tantas as que ficam por conhecer de tanta gente. De facto, apesar da existência da tal burocracia atual, continuam a fazer-se atividades maravilhosas com as crianças e jovens, como plantar flores e cuidar delas, ler e contar histórias, participar em debates com voluntários de diferentes instituições ligadas aos Direitos Humanos, revelar trabalho científico realizado na  sala de aula e tantos outros projetos que mostram boas e úteis interações.

Domingo à noite, na despedida de um programa de canções, no canal 1, Catarina Furtado pedia que cada um fosse cada dia melhor pessoa - um bom propósito de Ano Novo, sem dúvida.

 O que se aprende e produz nas escolas pode também ajudar muito a que todos possamos ser melhores pessoas.  Será que divulgar mais o que se faz de bom em tantas escolas também ajudaria?

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

4 de dezembro - um dia com histórias

 

Tal como eu já havia dito, foi apresentado, no passado dia 4 de dezembro, o livro As Fadas do Bosque das Cores e das Estórias, com ilustrações da Cristina Pinto, no Lugar do Desenho, em Gramido, Gondomar. Foi uma tarde boa, apesar das novas exigências anti-covid. As pessoas marcaram simpaticamente presença, o espaço tinha muitas das cores das estórias contadas e desenhadas no livro e estávamos felizes - autora e ilustradora - pelo trabalho produzido e pela boa recetividade de todos.

 

O livro e os marcadores

As fadinhas que 'voavam' para todos


A instalação com folhas de papel - ideia do bosque



Alguns dos trabalhos expostos


A árvore de diferentes cores

A mesa: Rep da Fund., Edit, Aut, Apres. Ilustrad.

As palavras que dirigi aos presentes:

 

Olá a todos. Bem-vindos.

Muito obrigada pela vossa presença, apesar de todos os afazeres e de todas as condicionantes e variantes da covid 19 neste tempo que atravessamos.

E a presença das crianças também é muito agradável, porque foi sobretudo a pensar nelas que escrevi a história deste bosque e destas sete fadas e também a Cristina Pinto nas suas ilustrações.

Na próxima semana, iremos a uma escola do 1º ciclo de Valbom dialogar com crianças sobre o livro e sobre tudo que vier a propósito, convite que nos agradou muito e esperamos que haja outros.

É muito bom escutar as crianças, as da nossa família, as dos nossos amigos, aquelas que não conhecemos e passamos a conhecer e ver como, na sua verdade, encaram o mundo. Se gostarem do livro e encontrarem alguma palavra ou algum desenho que as façam felizes e com vontade de contar, escrevendo ou desenhando, novas histórias, já valeu a pena este trabalho.

E em boa hora mostrei a história e alguns desenhos à Editora Novembro, que logo a quis publicar, acompanhando com atenção e profissionalismo todo o processo. Muito obrigada, Dra Avelina, D. Narcisa e Elsa, a designer, que soube enquadrar muito bem a história que escrevi e as ilustrações que a Cristina Pinto produziu. Foi igualmente a designer que compôs a capa que está muito bonita.

Muito obrigada também ao Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende que aceitou de imediato a proposta de fazermos aqui a apresentação do livro. E fiquei feliz pelo privilégio de podermos estar hoje neste  Lugar de que tanto gosto e onde há tanta arte,  tanta beleza e tanta simpatia, valores que são cada vez mais importantes para vivermos em harmonia, nas diferentes fases da vida. E todos sabemos bem que os tempos não vão fáceis para ninguém.

E, para apresentar o livro, logo me surgiu o nome da minha amiga Idalina Ferreira, a quem já tinha dado a ler a história há bastante tempo. Muito obrigada, Idalina, por teres aceitado logo o meu convite com tanto carinho e amizade.

Quando inicialmente a Idalina leu a história, teceu elogios e, como é muito exigente, fiquei mais descansada. Se gostava, valia a pena publicá-la. Sei que, para além do seu imenso saber e de ser uma pessoa com quem já aprendi e aprendo muito, é prática e não gosta de ser alvo de atenções.

Por isso, as minhas atenções vão agora para a minha família. Um obrigaaaada a todos pela boa interação que existe entre nós e por valorizarem este meu gosto pela escrita. Talvez por isso, aos 71 anos, sinto uma grande alegria com os textos que vou produzindo e partilhando. E um abracinho especial para as minhas filhas Ana e Lúcia.

Os meus amigos são também fundamentais na minha vida. Para além de partilharmos muitos momentos das nossas vidas, também lemos e trocamos impressões sobre textos que escrevemos, incluindo os  blogues. Obrigada a todos por tão boa partilha e comunicação, sob diferentes formas incluindo o Whatsapp, e permitam-me referir o papel atento e minucioso da Isaura Afonseca, que não pôde cá estar, pelas apreciações atentas e sugestões que sempre faz aos textos.

Desculpem-me se as minhas palavras lembram aqueles papelinhos amarrotados das pessoas que sobem ao palco quando recebem um prémio. Mas, de facto, aqui e agora sinto a alegria de ser premiada por tudo que já referi e pelo livro produzido que dediquei aos meus netos tão queridos, Sofia Clara e Joaquim Pedro.

Quanto à história, nasceu com um Era uma vez, contado há uns anitos numa noite em Londres à minha neta antes de ela dormir. Espero é que no Natal ela possa voar até cá.

Naquele momento, surgiram-me sete fadas de cores diferentes que viviam num bosque e que pensavam que só a sua cor existia.  Viriam, porém, a mudar de ideias com uma atitude que uma delas tomou e que viria a alterar a vida de todas.

História escrita para crianças exige ilustração. E teria de ser a Cristina Pinto a fazê-la. Já havia ilustrado as Histórias da Clarinha, livro publicado em 2019, na Editora Lugar da Palavra. E, dando tempo ao tempo, a Cristina, que, felizmente, aceitou o meu convite, foi fazendo os desenhos maravilhosos que voaram para o livro e que hoje aqui estão expostos. E realço a bela árvore feita também pela Cristina. Embora muito pequeninas, lá estão as fadinhas e uma casinha no centro, com a união de várias cores que cada um poderá interpretar e reinventar.

E espero que tenham gostado das fadinhas e dos marcadores que a Cristina  desenhou. E desta instalação que ela também criou. A Cristina é uma ilustradora muito criativa, muito trabalhadora, muito cuidadosa com o pormenor e com quem aprendo muito e gosto muito de trabalhar. E que me põe a trabalhar! Muito obrigada, Cristina, e também pela tua amizade e olha que já me cheira a novas histórias.

Muito, muito obrigada a todos. Boas leituras. Muita saúde. E que a vida de todos tenha bons e felizes momentos, como acontece no nosso livro As fadas do bosque das cores e das estórias que, com tanto prazer, hoje apresentamos.

Muito obrigada, mais uma vez e, desde já, um Feliz Natal.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Desculpem a demora. Confesso que já tinha saudades!

 

Há bastantes dias que não abro esta janela, embora goste muito de cá vir para respirar este ar amigo, bom e renovado.

Não, felizmente não estive doente, nem ninguém dos meus mais próximos. Só que estou a viver a alegria de ter a casa cheia (com os devidos cuidados e testes à mistura), ainda que esta alegria dê trabalho, porque sou filha, mãe, avó... Contando com toda a azáfama de Natal. Acho sempre em demasia, mas todos os anos acabo por repetir certos rituais.

Outra tarefa que também me ocupou bastante foi a apresentação do meu livro para crianças As fadas do bosque das cores e das histórias. Tenho fotos que quero partilhar, porque o encontro no Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende, em Gondomar, foi um momento que considerei muito bonito e feliz.

Mas, mesmo assim, amigos, desculpem a ausência. Todos os dias sentia falta de cá vir, mas as horas passavam velozes e depois vinha algum cansaço e também, talvez, um pouco de preguiça.

Agora, continuo com a casa cheia, mas sem o frenesim do consumo do Natal. Prefiro assim, sem dúvida.

Não vos desejei Bom Natal, mas desejo a todos agora Bom Tempo de Natal e Feliz Ano Novo, apesar de daqui para a frente não querer demorar tanto tempo a abrir a janela que também me ajuda a respirar.


Um conto de Natal

 

Partilho este conto que escrevi para a coletânea, cuja capa reproduzo em baixo, com desejos de um

 Feliz Tempo de Natal! 

Também com luzes de semáforos que vão piscando e chamando a atenção para o que à volta delas acontece.



Maria Dolores Garrido 

À Isaura

O velho do semáforo

Aquele semáforo fazia parte do meu trajeto quase diário. Passava lá, no mínimo, três ou quatro vezes por semana, entre as nove e as dez da manhã. A essa hora, o velho lá estava, no separador entre as duas vias, junto da fila de carros que parava ao sinal vermelho, quase a chegar ao Porto. Nesse lapso de tempo, o homem tentava aproximar-se do maior número possível de condutores, mas não conseguia abordar mais do que dois ou três, porque logo aparecia o sinal verde e todos arrancavam o mais depressa que podiam para evitar perdas de tempo, sempre escasso na ida para o trabalho.

Vezes sem conta o velho também se aproximou de mim, inclinando-se para a janela do meu carro, saudando com a mão e sempre mostrando um sorriso. O homem é simpático e terá, como qualquer ser humano, uma história de vida - pensava eu e interrogava-me por que razão nunca tinha aberto a janela para falar com ele, mesmo que fosse só para lhe dar os bons dias. E, lá com os meus botões, ia pensando que fechamos tantas vezes as janelas aos outros e gostamos tanto que para nós sejam abertas!

Nunca o vi de mau humor ou contra alguém que, como eu, nem abria a janela, embora lhe sorrisse. Às vezes até aproveitava a pequena pausa entre o vermelho e o verde do semáforo para me ver ao espelho ou espreitar o telemóvel. Ainda assim, tentava corresponder à simpatia do velho, acenando, mas não de forma explícita, confesso, porque o seu aspeto andrajoso e sujo retirava-me a vontade de comunicar sem o vidro da janela de permeio. As suas barbas abundavam crespas e incertas e o cabelo mal se via porque usava um gorro escuro e espesso. O outono já tudo arrefecia.

Numa manhã de novembro, fria mas luminosa, disse para mim que já era tempo de dirigir algumas palavras ao velho. Tantas vezes ali passava, tantas vezes era saudada, tantas vezes me dirigia palavras que tinha também de retribuir. Podia ser só para dizer bom dia ou até amanhã, mas tornava-se urgente fazê-lo, abrindo a janela. Na viagem seguinte, quando  cheguei ao semáforo, logo apareceu o sinal verde e tive de circular o mais rápido possível, para evitar buzinadelas nervosas e vozes destemperadas. Ficaria para o dia seguinte. Teria uma moeda à mão.

 Nessa manhã, fiquei logo à frente da fila, diante do implacável sinal  vermelho. O homem aproximou-se do meu carro, mas ainda não foi dessa que abri a janela. Tinha-me esquecido da máscara e não queria enfrentar aquele respirar direto, durante a saudação habitual, sempre com muitos acrescentos: bom dia para si e também para a família e muita saúde que é o melhor da vida e muita alegria que faz muito bem à alma, etc etc etc. Sorri e arranquei logo que pude. Seguiu-se uma semana de vento e chuva. Durante esses dias de tempestade, do velho nem sinal.

Os dias foram passando sem eu chegar à fala com o homem. Porém, sempre no mesmo lugar, o velho mantinha-se afável e transmitia uma ternura imensa que lhe escorria do rosto aberto em sorrisos e das mãos em acenos. Podia sentar-se à porta de uma igreja, de mão estendida em jeito de miserável sofredor, mas não, aguentava-se ali ao tempo, exceto quando chovia, mantendo-se de pé, distribuindo mais do que recebendo mimos, aceitando a má disposição de quem, àquela hora, ainda não tinha aberto a caixa dos sorrisos ou então a mantinha fechada à chave há muito perdida.

Eu não podia continuar a adiar uma pequena mas carinhosa troca de palavras com o velho. Como o Natal chegava, esse seria o momento. Sem hesitações, decidi dar-lhe um presente para compensar a pouca atenção. Comprei-lhe bombons macios e saborosos. Postos em caixinha bonita. Sem laço para ser mais fácil abrir e evitar também o desperdício. Como reagiria ele quando a recebesse? Sorrisos haveria com certeza, palavras carinhosas sem dúvida, brilho dos olhos não faltaria... E talvez surpresa. Não devia estar habituado a receber prendas, para além das moedas.

Nessa manhã, pus a caixinha dos bombons no banco da frente, junto à carteira. Quando chegasse ao semáforo, se fosse das primeiras pessoas da fila, poderia dar-lhe o presente um pouco mais devagar;  se o sinal vermelho já estivesse no final, teria a possibilidade de lhe entregar rapidamente os bombons com votos de bom Natal. Se sobrassem uns segundos, ainda lhe desejaria muita saúde e muita alegria, tal como ele dizia sempre a toda a gente, mesmo que não lhe abrissem a janela.

Quando cheguei ao semáforo, fiquei em segundo lugar na fila e peguei logo na caixinha que já tinha à mão. Oh! Não, não podia crer, quem eu queria que lá estivesse não estava. Não havia chuva a impedi-lo de vir que o céu estava bem azul e transparente. Estaria o velho doente? Alarguei o olhar nos poucos segundos que me restavam antes de avançar e deixar seguir os outros, confirmando que ele não estava mesmo lá.

No dia seguinte, saí de casa convicta de reencontrar o velho no semáforo para, finalmente, abrir a janela e entregar-lhe o presente. Mas não, mais uma vez, ele não estava no seu posto habitual. Nos últimos segundos de sinal vermelho, vi passar uma mulher jovem com olhar sorridente, um telemóvel pequenino numa das mãos  e um saco de pão na outra. Devia morar perto. Ainda tive tempo de lhe perguntar pelo velho do semáforo. Morreu há dias, respondeu. Estava em casa e a casa incendiou-se, concluiu com ar pesaroso mas sem falso drama.

Ela devia ter sentido prático, porque, ao ver o sinal vermelho, nada mais acrescentou, afastando-se no seu passo pequeno mas ligeiro.

Eu é que não retomei logo a marcha ao sinal verde, o que me valeu uma grande buzinadela de um dos condutores atrás de mim. Assustei-me de tal modo que deixei cair a caixinha e os bombons espalharam-se todos pelo chão.

In Lugares e palavras de Natal, Editora Lugar da Palavra, 2021, p. 42/44

 


quarta-feira, 1 de dezembro de 2021