segunda-feira, 7 de junho de 2021

DOMINGOS MIRA FLOR

 


Eu já tinha chegado a esta conclusão: as varandas do Porto são mais visíveis ao domingo de manhã. Parece absurdo, mas, se não acredita, experimente passar nas ruas Mouzinho da Silveira, das Flores e outras do Porto antigo, fora da azáfama da semana. As varandas, de recorte simples, puxam e demoram os olhares.

Ora, numa manhã de tempo e espaço desanuviados, vi, numa velha varanda, um homem sentado. Nada de estranho, dirá o leitor, não fosse aquele estar de camisa de noite até aos pés. Junto dele, erguia-se um vaso de begónias vermelhas e, quase debaixo delas, dormia um gato farfalhudo, de sono interrompido por suspirados sobressaltos.

Não pude deixar de olhar, porque muitas varandas estavam nuas de plantas.

Há setenta anos e cinco meses que o Sr. Domingos era habitante desta casa da rua que se abria ao Largo de S. Domingos. Da sua varanda, ele conseguia ver o rio, os quintais interiores de casas vizinhas, a ponte D. Luís, os anúncios ao vinho do Porto - brindando a todos os momentos e prazeres - do outro lado, como ele dizia quando se referia ao Cais de Gaia.

O Sr. Domingos vivia só, tendo a companhia do gato e da paisagem. Tudo era encantamento, apesar de ser costumeira e diária a visão.

Conhecia as outras varandas vizinhas. Lamentava as que iam ficando vazias: murchas ou mirradinhas, as plantas sinalizavam o abandono e solidão.

Quando via alguém na varanda, o Sr. Domingos fazia uma saudação, mas, muitas vezes, disfarçava e desviava o olhar, porque se lembrava do que a mãe lhe dizia, na sua voz austera e bem pronunciada: “Devemos ser discretos, carago!”. Achava que a palavra carago não combinava muito bem com a maternal discrição, em cujo berço fora educado, mas não contrariava a mãezinha.

Ora, quase em frente, vivia uma professora há muito ano. Assim dito, o tempo recuava pausado e singular. Nunca tinha falado com ela.

Um dia, decidiu interpelá-la, pedindo-lhe desculpa pelo arrojo do seu gato. “Desculpe, não sei se a senhora já reparou, o meu gato foi dormir no seu canteiro das  aromáticas. Eu bem o chamei…”.

Que sim, que já tinha reparado, mas que os gatos têm pouco pensar ou até nenhum, e que não se inquietasse.

Claro que era de se preocupar e o melhor seria pôr um resguardo no canteiro: “Se a senhora quiser, eu posso ir aí à tardinha tratar disso, pois o raio do gato é que fez os estragos. Já o castiguei, mas foge-me e não posso ir atrás dele, como poderá compreender, embora gostasse…”.

A vizinha, recém-reformada, aceitou e, nessa mesma tarde, à hora marcada, o Sr. Domingos fez-lhe sinal da sua varanda. Como era dia de semana e passava muita gente na rua, se falasse alto, todos ficariam a saber do seu intento e do recheio da sua vida, assim como de uma das sete do seu gato. De facto, para o governo da sua existência só ele era o eleito.

Vestiu umas calças com vinco, um polo azul, um blusão pardacento, dado pela mãe num Natal; viu-se ao espelho, endireitou a risca do cabelo, ainda com alguma pujança, com um pentezinho antigo; reparou que os sapatos estavam demasiado gastos e mudou as meias brancas porque tinham um fio puxado. Pegou na caixa da ferramenta e nuns pedaços de rede que ia guardando e atravessou a rua.

Logo que o viu, a professora reformada disse-lhe, roliça e canora: “Pode entrar, não faça cerimónia”. Ele respondeu “Com certeza, minha senhora” e lá foi subindo, dirigindo-se à varanda, não fossem outros passos serem mal entendidos. Já lhe bastava a ousadia do gato.

 

(Parte 1 de talvez 3)

 

domingo, 6 de junho de 2021

É bela a diversidade também nas flores

 



Fui hoje a Mindelo e deparei com esta beleza larga de flores entre o parque de estacionamento e o passadiço junto à praia.
 Umas aparentemente espontâneas, outras um bocadinho menos, mas só um bocadinho. Indaguei sobre o semeador/plantador. A Junta de freguesia, disseram-me. 
Bela ideia. Venham mais. E que sejam semeadas/plantadas noutros sítios.



Como se tivessem dez anos


Maria dos Anjos e Adélia encontram-se por acaso, mais de quarenta anos após a escola primária. Reconhecem-se. Num primeiro instante,  tendem ambas a fingir que não se veem, mas não o fazem. Param e dizem algumas coisas que sempre ficaram por dizer. Foram mais sinceras do que quando tinham dez anos.

 

- Maria dos Anjos! Há tantos anos que não nos víamos.

- Sim, desde que partiste para França, Adélia.

- Mandei-te um postal, mas não me respondeste.

- Não me lembro. Ou melhor, quis esquecer para aquele anjo rechonchudo não ocupar demasiado espaço da minha memória.

- Mas agora estás bem mais magra, Maria.

- Sempre me chamaste Maria dos Anjos. Até gozavas com o meu nome.

- Já passaram muitos anos e as asas de todos nós foram voando de vários modos.

- Às vezes, voos rasantes, outros mais altos, uns mais tresloucados...

- Vamo-nos sentar naquele banco à sombra. Tens tempo?

- Sim, as nossas pernas já não têm a mesma resistência de quando íamos na procissão.

- Eu nunca fui na procissão, Maria.

- Ficavas a ver para depois criticar.

- Nem imaginas como gostava de ter ido também, de ter tido uma mãe que me obrigasse a isso.

- Não vejo porquê. Eu detestava.

- Se me obrigasse, era porque achava que eu era capaz.

- Mas parecia que dominavas tudo, que vendias confiança.

- Como uma galinha meio engalinhada. Eu era tão insegura, Maria.

- Nunca pensei, Adélia, nem que voltássemos a falar.

- Éramos crianças, Maria.

- Tu ferias mais do que muitos adultos.

- Eu sei e já o sabia na altura.

- Então, por que persistias?

- Porque havia coisas que se passavam comigo que também me feriam muito.

- Exorcizavas os teus demónios, atacando, criticando, amesquinhando?

- Havia um muro, Maria, que me punha revoltada e infeliz.

- Não entendo, Adélia. Como não entendia alguns dos teus comportamentos. Lembro-me que, num dia frio de inverno, a minha mãe me obrigou a levar dois vestidos para ir mais agasalhada. Deitaste-te no chão do recreio para te certificares que eram mesmo dois vestidos e ridicularizaste-me tanto que não parei de chorar. Quanto mais eu chorava, mais tu te divertias a rastejar e a apontar para mim. Parecias um réptil.

- Maria, apesar de tudo, estamos aqui sentadas neste banco onde chegámos por acaso. Devem ter sido os anjos que nos trouxeram.

- Espero que sim, porque quero afastar cada vez mais os demónios.

- Vejo que ainda estás ressentida comigo e com razão.

- Já que os anjos nos trouxeram até aqui, diz-me: tens filhos?

-Tenho dois filhos e dois netos. Ultimamente, ando muito preocupada com um dos meninos.

- Então, está doente?

- Não é pequena doença. Tem sido vítima de bullying na escola. É o mais pequeno da turma e agora nem quer vir ao recreio com medo do que lhe dizem e do que lhe fazem.

- ...

- Não dizes nada?  Tens netos com o mesmo problema?

- O meu filho não tem filhos. Perdeu a mulher com a idade que eu tinha quando me separei. Quanto ao teu neto, compreendo muito bem a tua dor, Adélia, mas não fiques calada, nem tenhas medo, nem sintas vergonha.  Ouve-o sempre com atenção.

- É o que eu tenho feito e também me tenho ouvido a mim própria, o que me tem ajudado a transpor o muro que não esqueço.

- Já falaste duas vezes de um muro, Adélia. O que queres dizer?

- Continuas com tempo para me ouvires?

- Continuo.

- É que acontece tão poucas vezes haver quem nos oiça e seja franco connosco. Sinto este peso a atormentar-me desde muito pequena. É uma doença que não tem cura.

- Sim, esse é também um muro que nos tolhe muitos dos nossos passos, mas voltemos ao muro da tua infância.

- A minha casa dava para a casa da minha avó. Eu ia pra lá quando chegava da escola e era lá que eu era feliz. Podia correr, saltar, apanhar flores, fazer os deveres no coberto, ouvir os pássaros, brincar com os animais...

- Então, mais uma razão para viveres bem contigo e com os outros.

- Um dia, quando cheguei da escola, estavam a erguer um muro entre a nossa casa e a casa da minha avó. Eu nem queria acreditar. Estavam a arrancar-me do meu paraíso. Nunca me explicaram a razão do muro da separação. Eu bem perguntava, mas ninguém me respondia. Acho que nem ouviam ou faziam de conta que não ouviam. Eu era um ser invisível mas, mesmo assim, incapaz de saltar o muro.

- Foi quando viraste fera enraivecida.

- E a minha raiva não dava para bater mas para escarnecer. Assim, eu era ouvida, eu era temida e ninguém ficava indiferente ao que eu dizia.

- Voltando ao teu neto, o problema de bullying está a ser resolvido?

- Lembraste-te do bullying, porque era bullying o que eu fazia, sobretudo contigo. Eu sei.

- Não lhe dávamos era esse nome. Foi por causa do tal muro que os teus pais emigraram?

- Foi. Não aguentaram e as zangas entre eles dispararam. Era um inferno. Culpavam-se um ao outro a toda a hora. Quase fugimos para França. Quando regressámos, muitos anos depois, o tempo já tinha deitado abaixo uma boa parte do muro e a casa da minha avó estava em ruínas.

- Um muro e as suas ruínas.

- Continuas a gostar de palavras bonitas.

- Sim, cada vez mais. São um modo de eu ir derrubando os meus muros, porque os tenho, tal como toda a gente.

- Maria, posso pedir-te desculpa e dar-te um abraço?

- Sim, Adélia, mas não como se tivéssemos dez anos.

 

sábado, 5 de junho de 2021

Maria dos Anjos

 (Rente a uma decisão)

Passado algum tempo, o Manuel chamava-me apenas 'meu anjo', com bastante ternura, o que me agradava. Depois, passou a ser um hábito que deu lugar a alguma ironia, sobretudo quando discordávamos ou nos zangávamos. A inquietação começava a assolar-me, trazendo o medo de escura solidão. Num fim de tarde ruidoso de chuva e trovoada, desentendemo-nos seriamente e Manuel ameaçou-me, nunca deixando de dizer meu anjo... meu anjo... Eu, angelicamente, atribuí a ameaça ao cansaço e à tempestade, porque Manuel pediu-me logo desculpa, repetindo 'meu anjo', agora em tom de bonança. Porém, umas semanas mais tarde, numa noite calma de lua cheia, perante novo desacordo, repetiu e aumentou as ameaças, sem nunca deixar de me chamar meu anjo... meu anjo... agora com frio sarcasmo.

        Com mil demónios, pensei. 

        Foi quando eu, Maria dos Anjos, decidi despir a roupa de anjo, perder o medo e  sair dessa procissão. 

        

 

        Nota 1 - Este pequeno conto foi publicado na coletânea Anjos da Prosa e da Poesia, da Editora Lugar da palavra, 2021, p. 46/48.

  

Nota 2 - Obrigada por me terem acompanhado na história. Um palpite da Bea, num comentário, deu-me uma ideia. Assim, talvez a Adélia e a Maria dos Anjos se encontrem em breve. Por que não? Estas coisas não acontecem só na vida real.


Um bom dia para todos e que os anjos também ajudem!

  

 

  

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Maria dos Anjos

(Entre o antes e o depois)

Naquela altura, eu era bastante solitária, porque os adultos à minha volta não tinham tempo para ouvir ou falar pausadamente. Éramos cinco irmãos e a família andava sempre atarefada. Eu era a segunda filha mais velha e tinha também de olhar pelos meus irmãos mais pequenos. Não havia tempo para perguntas e respostas, para dúvidas e esclarecimentos, para afetos ou ternuras. Talvez por isso não partilhei a minha tristeza causada por esta graçola de Adélia. Não disse a ninguém nem à minha irmã do meio, com quem me entendia muito bem, porque ela estava a ajudar a minha tia. Lembrei-me de ir ter com elas, mas acabei por não ir, porque as imaginei tão ocupadas a bordar que ouviria com certeza pela voz da minha tia: - 'Deixa-nos, porque tenho prazo de entrega e gosto de cumprir'.

Foi mais um momento em que me senti um ser invisível. Como se falasse mas ninguém me visse nem ouvisse e rasguei o desenho, porque não haveria, por certo, ninguém disponível para me ajudar, a não ser para me dizer: 'Deixa lá isso, não ligues, isso passa!'

       E eu, Maria dos Anjos, fui crescendo e, vejo agora, era até uma jovem bonita. Foi quando o Manuel começou a sorrir-me e a aproximar-se de mim. Um dia, convidou-me para um baile de garagem, com muito calor e muitos slows. Quando veio o casamento, eu tinha dobrado os vinte anos há pouco. Ganhara uma companhia. O Manuel chamava-me Maria dos Anjos com todas as letras. Era amor. A minha solidão foi-se esbatendo. Tinha com quem falar. Tinha quem me ouvisse. Manuel começou então a chamar-me 'meu anjo da guarda', mas a expressão não me agradava, porque  aprisionava, lembrava-me o distante domingo da procissão em que me vesti de anjo, obrigada pela minha mãe, com receio do olhar trocista de Adélia. Aquele tempo havia ficado de tal modo inculcado na minha memória que qualquer estímulo me fazia revivê-lo. Comecei  a mostrar desagrado por ouvir tantas vezes 'meu anjo da guarda'.

 

 (Por mim, gostava de contar um pouco mais).