domingo, 12 de junho de 2022

Hoje lembrei-me da palavra riscote

 

Tenho uma tia que foi modista durante muitos anos. A minha irmã e eu, quando éramos pequenas, gostávamos muito de ir para casa dos meus avós, onde ela ainda morava, porque a sala de costura era um lugar muito alegre e onde havia tecidos e carrinhos de linhas de muitas cores e feitios. Preferíamos as tardes, porque era quando estavam as raparigas a quem a minha tia ensinava costura. Enquanto costuravam, iam comentando as coisas que aconteciam com elas, sobretudo se falavam dos rapazes que lhes faziam a corte, e soltavam grandes e juvenis gargalhadas. Para nós, era uma festa.

Pois bem, em cima da mesa onde a minha tia estendia os tecidos para o corte - muitas vezes tirado dos moldes da revista Burda - havia vários riscotes, com que ela marcava, com traços intermitentes e precisos, as linhas que a tesoura grande e bem afiada ia seguir e cortar. 

Às vezes, pedíamos-lhe para marcarmos também com o riscote a roupinha das bonecas que fazíamos com bocadinhos de tecido que sobravam. Depois, olhávamos para as mãos que ficavam mais ásperas e tingidas da cor do riscote. E esfregávamos os dedos para sentir o pozinho colorido  entranhado.

Quando chegássemos a casa, tínhamos de lavar as mãos, sem mais delongas. No dia seguinte, logo que pudéssemos, lá nos escapávamos para a sala onde a minha tia trabalhava e onde não faltava o riscote, que também ajudava a riscar algumas tardes divertidas.

 

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Hoje, dia de Camões, super ou não, e de todas as pessoas, incluindo Pessoa

 

Obrigada, Idalina, por mais este belo texto sobre uma pessoa que parecia "como toda a gente", mas que, afinal, não o era. Ou era?

 

"Dia 6

SOBRE FERNANDO PESSOA

Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho
pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem,
como se fosse a primeira vez. Começou por se chamar Fernando, pessoa
como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento
iminente de um super-Camões, um camões muito maior que o antigo, mas,
sendo uma pessoa conhecidamente discreta, que soía andar pelos
Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas,
não disse que o super-Camões era ele próprio. Afinal, um super-Camões
não vai além de ser um camões maior, e ele estava de reserva para ser
Fernando Pessoas, fenómeno nunca visto antes em Portugal.
Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são
iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao
passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance,
outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de ótica, das que
estão sempre a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último
copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à
cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os
espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se
enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem
não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar
para o moreno, toda ela rapada. Com um movimento inconsciente,
Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou fundo com infantil
alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que
apareçam nos espelhos, menos que falem. E porque estes, Fernando e a
imagem que não era a sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: «Chamo-me Ricardo Reis.» O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido,com aspeto de quem não vai ter muita vida para viver. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: «Chamo-me Alberto Caeiro.» O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora.

Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que
não há duas sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem
daqueles que exibem saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de
engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: «Chamo-me Álvaro
de Campos», mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do
espelho, afastou-se ele, provavelmente tinha-se sentido cansado de ter
sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando
Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho.
Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: «Chamo-
me Bernardo Soares», e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e
alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e
escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito
adiantado nos trabalhos de tradução e poesia, morreu. Os amigos diziam-
lhe que tinha um grande futuro na sua frente, mas ele não deve ter
acreditado, tanto assim que decidiu morrer aos 47 anos, imagine-se. Um
momento antes de acabar pediu que lhe dessem os óculos: «Dá-me os
óculos», foram as suas últimas e formais palavras. Até hoje nunca ninguém
se interessou por saber para que os queria ele, assim se vêm ignorando ou
desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem
finalmente lá estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia
no quarto. Este Fernando Pessoa nunca chegou a ter verdadeiramente a
certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos
conseguindo saber um pouco mais quem somos".
 
Saramago, José, O Caderno, Porto, Porto Editora, 2018, pp. 54-56

 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Muito dizem os jornais mas deles os outros não falam

 

Este fim de semana, uma amiga, que coordena o jornal do agrupamento de escolas onde trabalha, pediu-me para eu rever o jornal escolar. É que outros olhos podem detetar gralhas que os olhos do próprio parecem não ver, apesar de muita revisão. Acontece a todos.

E é sempre com muito gosto que o faço porque revejo situações - umas que vivi, outras que gostaria de ter vivido, outras que sempre me cativaram, outras das quais já me sinto mais distante...

E como, neste caso, o agrupamento envolve escolas do 1º ciclo ao secundário, o jornal mostra meninos em ação - dentro e fora da sala de aula, a ler, a escrever, a desenhar, a apresentar trabalhos, a plantar árvores, em visita de estudo, a cultivar a hortinha, a fazer desporto, e um sem número de coisas boas que geram boas aprendizagens para a vida.

Já os mais velhos mostram experiências realizadas, no campo da biologia, da física e química, do ambiente, da matemática, da língua materna e línguas estrangeiras, da formação profissional, etc.

Também gostei de ver testemunhos de jovens de outras nacionalidades  sobre o modo como foram acolhidos e integrados na escola.

Claro que a vida escolar, como sabemos, nem sempre é uma mar de rosas, mas ler os jornais escolares - dos quais, habitualmente, os outros jornais não falam - também nos permite conhecer  atividades, realizadas pelos alunos com o apoio de professores, que abrem janelas de esperança. E bem precisamos dela para continuarmos a respirar.

 

domingo, 29 de maio de 2022

Já sou fã deste polícia!

 

Tenho uma amiga que gosta muito de ler autores de língua espanhola. De vez em quando, envia excertos que são pérolas, como o que hoje partilho. Como também ando a ler o livro, já sou fã do polícia Melchor Marin, que foi convidado a fazer um discurso, coisa  a que não estava nada habituado!

Tenho pena é de não poder ler muito tempo seguido, porque há páginas cuja história não apetece mesmo nada interromper.

Obrigada, Idalina, por tão boas sugestões.

Oxalá gostem também.

 

 

"- Chamo-me Melchor Marín e sou polícia – apresenta-se. – Muitos de vocês já me conhecem. Fui jurado do prémio e por isso pediram-me que dissesse algumas palavras. Por isso e porque mais ninguém queria fazê-lo. – Melchor levanta um pouco os olhos na direção do auditório: quando preparava o discurso, pensou que seria bom começar com uma piada, para que os jovens se rissem; mas ninguém se riu. Talvez não tivesse graça ou ninguém o tenha ouvido. O alvoroço continua a ser considerável, mesmo que os professores percorram os corredores de cima a baixo tentando silenciá-lo. – E também porque gosto de ler romances – continua. – Isto não é muito comum, acho. O que quero dizer é que não é muito habitual os polícias lerem romances, certamente porque os meus colegas pensam que é mais útil e mais divertido ler sobre coisas reais do que sobre coisas inventadas. Talvez tenham razão e por isso percebo que alguns, às vezes, se riam de mim. Ao princípio, quando era mais novo, isso aborrecia-me; agora já não, porque me dei conta de que um homem que se aborrece porque os outros se riem dele não é um homem. – Melchor limpa a garganta, volta a olhar com apreensão para a plateia e repara que um silêncio quase perfeito se apoderou dela; por instantes pensa que aconteceu alguma coisa, ou que alguém importante acaba de irromper na sala. – Quando era miúdo não gostava de ler – prossegue. – Gostava de me armar em gandulo, como toda a gente. – Aqui ouvem-se alguns risos: coibidos, isolados, trocistas, inseguros. – Descobri os romances na cadeia, quando era mais ou menos como vocês, como os mais velhos de vocês, pelo menos, talvez um pouco mais velho. A cadeia é um lugar muito mau, não vos recomendo. – Agora a risota é geral, e, um pouco surpreendido, Melchor deixa de falar e aguarda que se faça silêncio novamente. Retoma a frase do princípio e termina-a: - Mas, às vezes, até num lugar tão mau acontecem coisas boas. Por exemplo, Cervantes teve a ideia para o Dom Quixote numa cadeia; bom, é o que dizem, eu não sei porque não li o Quixote. Se calhar fiz mal, ao fim e ao cabo toda a gente diz que é um romance muito bom. Mas, não sei porquê, sempre pensei que não me estava destinado, e outra coisa que aprendi com os anos é que uma pessoa só deve ler os romances que lhe estão destinados.

Mas voltemos à cadeia. Comecei a ler romances por causa de um homem que conheci ali. Chamava-se Gilles e os guardas chamavam-lhe Guille, mas, como era francês, os reclusos chamava-lhe o Francês. É uma das melhores pessoas que conheci na vida, apesar de estar na cadeia por ter matado à martelada a mulher e um amigo dela. Este verão tornei a vê-lo, em Barcelona, e estava apaixonado, que é o que de melhor nos pode acontecer. – Melchor faz uma pausa, sente a boca seca e compreende que foi o medo que a secou. Infelizmente, ninguém se lembrou de deixar um copo de água no atril e, entre o silêncio, tente infundir coragem a si próprio, dizendo que já falta pouco para acabar. – O caso é que o Francês era o bibliotecário da cadeia e passava o dia a ler. Eu queria ser como ele, de modo que me pus a ler romances. A verdade é que de início não me agradaram muito, mas depois li Os Miseráveis, o romance de Victor Hugo. É muito famoso, não sei se ouviram falar dele… Eu li-o porque um dia o vi na mesa do Francês e me lembrei da minha mãe, que se queixava sempre das minhas más notas na escola e me dizia: «Se queres ser um miserável como eu, não estudes.» - Os risos obrigam-no novamente a parar, mas ele não se atreve a olhar para a plateia e, assim que o silêncio se instala, continua a falar. – De modo que li Os Miseráveis e, nesse momento, tudo mudou. Gostaria muito de vos dizer como mudou, mas a verdade é que não sei, não sou capaz de explicar. Durante anos pensei que foi por esse romance falar de mim, mas mais tarde vim para a Terra Alta e conheci a minha mulher, que me disse que todos os romances bons falam de nós. Tinha razão, claro, quando se tratava de livros a minha mulher tinha sempre razão, chamava-se Olga e era bibliotecária aqui ao lado, na Biblioteca Municipal, alguns de vós ainda se devem lembrar dela; graças a Olga comecei a colaborar na biblioteca, a levar-vos livros para a piscina no verão e coisas do género… Bom, acho que me perdi. – Durante os dois ou três segundos em que Melchor permanece calado, na sala não se ouve nem uma mosca. – Ah, sim, estava a dizer-vos que, segundo a minha mulher, todos os bons romances falam de nós. E também dizia que Os Miseráveis não era diferente, que não falava especificamente para mim. Claro que só dizia isso ao princípio, depois de nos casarmos mudou de ideias, começou a pensar que, se calhar, eu tinha razão e que Os Miseráveis era realmente um romance especial, não porque falasse de mim, mas porque falava de nós, dela e de mim. É que eu e a minha mulher nos amávamos muito… Enfim, tudo isto é muito complicado, como veem, e eu não me dou muito bem com discursos. Felizmente, este já está a acabar. De modo que, para terminar, dir-vos-ei outra coisa que aprendi a ler romances. O que aprendi é que os romances não servem para nada. Nem sequer contam as coisas como elas são, mas como poderiam ter sido, ou como gostaríamos que fossem. Por isso nos salvam a vida. – Melchor cala-se, absorto, e o auditório fica expectante, duvidando se ele já terminou ou não; finalmente, ele acrescenta, quase como se o fizesse para si próprio: - Bom, isso é tudo o que vos queria dizer: que os romances não servem para nada, exceto para salvar vidas".

                                           Cercas, Javier, Independência, 2022, Porto Editora, pp. 318-320.

 

sábado, 21 de maio de 2022

Não queria nada que trovejasse, mas...

 

Hoje tinha planos diferentes, mas, vendo as previsões do tempo, altero-os. Prevê-se trovoada e o acender do céu e o rebentar dos trovões faz-me mudar logo de ideias. Se posso, é claro.

Também tenho coisas para organizar, como descascar favas, varrer folhas, plantar um girassol que uma amiga me deu, etc.

O mar fica para quando o céu se desanuviar. 

Aproveitarei para acabar de ler o livro de Isabel Alves Pereira, A força do Amor, dedicado também ao seu Amor de longos anos e que lhe deu filhos e netos. São textos em prosa e poesia que ela foi escrevendo ao longo da vida e que, reformada, organizou em livro. Não sei é se nalguns deles fala de trovoada. Os nossos medos, apesar de poderem ser semelhantes, são também diferentes.

Pois bem, vou ficar para organizar as coisas da casa, incluindo a cesta de favas para descascar. Pode ser que, na simplicidade boa do ato, me venha ideia melhor do que a que acabo de tecer. Mas isso não são favas contadas.

Um bom dia de sábado!

 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Escrevendo/revivendo memórias

 

Trabalhámos largos anos na mesma Instituição. Sabia que ele tinha ido para África, durante a guerra colonial, tal como a grande maioria dos jovens, para cumprir o serviço militar obrigatário. Escreveu agora um livro de memórias. Quero ler o que nestas páginas é contado. A leitura também me ajudará a compreender o título. Serão referências clubísticas para amenizar as agruras de tantos dias e de tantas noites em terras distantes que, para alguns governantes, tinham de ser portuguesas?



quinta-feira, 19 de maio de 2022

Há anjos e anjos, disse eu (e não é novidade)!

 

Para esta edição de Anjos, da Editora Lugar da Palavra, o editor convidou três autoras para escreverem um pequeno texto para figurar no interior do livro e contracapa. Li todos os textos (prosa e poesia) e surgiram-me as palavras que hoje partilho. 

Um bom dia e que os anjos da terra e do céu não desistam de brilhar.

 

Há anjos e anjos!

Nesta coletânea, cuja edição merece elogio, existem figuras celestiais que assumem várias funções: guiam, guardam, protegem, trazem a paz, recordam espaços e tempos felizes, celebram a vontade livre de voar...

Porém, mesmo etéreos, estes seres conhecem o sofrimento, a tristeza, a desilusão, a queda... em paralelo com a esperança, a ternura, a dedicação, a amizade, a alegria, o amor...

 Por outro lado, também são anjos as pessoas reais que amamos e nos amam, que ajudam, respeitam, animam, aliviam as dores, embelezam e melhoram a vida à sua volta...

Também nesta obra coletiva não falta o sentido de humor. Até os anjos, com ou sem asas, saberão que o sorriso abre caminhos de empatia.

Inerente ao título, Anjos da prosa e da poesia, a palavra "asas" vai pousando, naturalmente, em diferentes textos; com o atual ruído da "guerra" a fazer-se ouvir e a palavra "mar" a surgir com muita frequência. Não fosse esta coletânea um mergulho redentor em ondas de humanidade às quais mais de meia centena de autores soube dar forma, procurando a sua felicidade e a dos outros, de mão dada com o amor e respeito pelas palavras.

 Há anjos com grandes asas que não fariam melhor.