domingo, 16 de novembro de 2014
sábado, 15 de novembro de 2014
Mas que a obra não morra!
Retrato do artista quando coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
Manoel de Barros
No
descomeço era o verbo
Só
depois é que veio o delírio do verbo
O
delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança
diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A
criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para
cor, mas para som.
Então
se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E
pois.
Em
poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos
–
O verbo
tem de pegar delírio.
Manoel de Barros
Manoel de Barros nasceu a 19/12/1916 e morreu a 14/11/2014, com quase 98 anos.
Comunicado pela livraria Poetria
sábado, 8 de novembro de 2014
Exercício de escrita
Este pequeno texto resultou de duas instruções -
Redigir um texto, em 10/15m, com, obrigatoriamente,
duas frases:
- Pensar com os pés dentro de água;
- Apanhar fruta da árvore e saboreá-la no momento.
No verão, fui ao quintal ver se ainda havia laranjas.
Tinham ficado duas no cocuruto da laranjeira. Não lhes chegava. Desdenhei-as,
então, como a raposa fez às uvas que apenas estavam ao alcance do seu olhar.
Queria apanhar fruta da árvore e saboreá-la no momento e
as únicas possibilidades estavam mais perto do céu do que das minhas mãos.
Desisti do intento,
Entrei em casa e pus-me a pensar com os pés dentro de
água. Não, pensar não é “estar doente dos olhos”, mas queria sentir os frutos
em vez de apenas os olhar pela janela.
De madrugada, chegariam os pássaros. Nessa altura, a
bacia de água morna onde amaciei os pés ganharia a dimensão do mar. Ou não.
Porque também os sonhos se servem frios.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
A menina que contava estrelas
A menina – ela tinha
dois nomes e um deles era Maria – morava numa casa muito alta. O lugar era
sossegado. Os carros que lá passavam eram quase todos dos moradores das casas
vizinhas.
Das janelas via
muitas árvores e também o rio Douro. Os pais, ou quem os visitava, olhavam a paisagem tranquila. Esticavam o pescoço
para verem melhor. Maria sentava-se e punha-se a brincar. Gostava sobretudo de
representar diferentes papéis.
De uma
psicóloga que queria ajudar uma criança aflita; uma médica que dizia que era
preciso comer sopa; uma amiga da mãe que fazia compotas deliciosas; uma
professora que gostava de adivinhas; uma avó que fazia malhas para oferecer aos
netos; uma colega que era muito refilona…
Não se
importava de estar sozinha e improvisava tanto que perdia a conta ao tempo em que
o fazia. Desde que começava a brincar nem sabia se tinham passado muitos ou
poucos minutos. Ou até horas. Só se lembrava do tempo quando tinha fome e tinha
de ir lanchar.
Pois bem, o
sítio dos brinquedos deixava ver o céu e, se era possível vê-lo de dia, também
era visível à noite. A menos que a mãe dissesse: vou fechar a janela, porque
vem trovoada e faz-me impressão.
Ou então: não
quero a janela aberta, porque, com a luz acesa, as pessoas veem-nos cá dentro.
Maria ficava a
pensar que mal fazia ver alguns relâmpagos e que as pessoas os vissem dentro de
casa. Estavam a fazer alguma asneira? Havia coisas que não entendia.
E a menina
também gostava muito do quarto dela. Era pequeno, mas tinha bonecos e brinquedos
coloridos. E uma janela muito alta. Começava acima da parte mais alta da
mobília. A janela tinha uma cortina grossa. A mãe, quando ia ao quarto dizer
boa-noite, aconchegar a roupa e contar uma história, corria a cortina e dizia:
Dorme bem, querida.
E Maria dormia,
mas…
Quando ficava
sozinha, antes de dormir, saltava para uma cadeira, depois para a cómoda e
abria a cortina. Assim, podia ver o céu mais aberto. A lua tanto era uma laranja
como uma fatia de melão. As nuvens tanto estavam inchadas como corriam
levezinhas…
E as estrelas,
as estrelas nem se podiam todas contar. Apenas olhar, fixar, vê-las a brilhar…
A mãe já lhe
tinha contado a história de uma estrela. Ou até mais do que uma.
E, antes de
adormecer, contava para si essas histórias e, olhando a janela alta que deixava
ver o céu, contava as estrelas que via: uma, duas, três…
até que
adormecia de vez.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
Um zangão à janela ou era uma vez um trinta e um?
Era uma vez uma professora. Como tantas professoras.
Talvez mais velha do que muitas professoras, mas continuava a gostar de ser
professora. Às vezes, a professora zangava-se. Queria que os alunos estivessem
atentos. Queria que os alunos fizessem os trabalhos de casa. Queria que os
alunos falassem e escrevessem corretamente. Queria que os alunos respeitassem
os outros. Queria que os alunos não fizessem barulho. Queria que os alunos
falassem na sua vez…
Mas às vezes gostava de sorrir, de dizer algumas
graças, de improvisar quadras a propósito de ocorrências ou momentos engraçados
– ou sem graça nenhuma – que se passavam na aula.
Pois bem, num dia em que o sol batia na janela e
aquecia a sala, a professora, ainda assim, mandou correr a vidraça. Porém,
abriu a porta, porque a sala de aula parecia uma estufa e ninguém era uma semente
na terra que precisasse de tanto aquecimento húmido para germinar.
E uma aluna, ao ouvir o pedido da professora,
levantou o braço e foi empurrando, empurrando a pesada vidraça larga, que se ficou por
uma abertura estreita até a professora dizer que estava bem.
Foi quando, de repente, se ouviu: ai, ui, que
horror, fogo, fecha a janela!
E a
professora, olhando os alunos e sem perceber ao certo o que se passava, foi
ficando zangada com a confusão. De repente, olhou para a janela e escancarou os
olhos ao ver um grande zangão, mesmo encostado à vidraça e a olhar para dentro
da sala.
E como a imaginação não tem fronteiras, logo se
ouviu:
- É um zangão curioso..
- O zangão quer explicações de graça.
- O zangão vai fazer exame e já começou a estudar.
- O zangão é esperto porque fica do lado de fora…
Foi então qua a professora – que tem uma costelita
parecida com uma qualquer de S. Francisco de Assis, disse:
- Deixem lá o bicho. Também tem direito à liberdade.
Mas, realmente, o melhor era ir à vida dele.
E, de repente, o zangão caiu no peitoril da janela e
desapareceu dos olhos dos alunos que o olhavam com curiosidade.
A professora disse então:
- Dava para escrever uma história gira. O título
poderia ser: “O zangão e a professora zangada”.
E logo a Mi-Mi abriu o rápido sorriso e disse: ó
setorinha, ó setorinha!
Ao mesmo tempo, talvez o zangão, agora desaparecido,
espreitasse uma nova sala de aula, podendo até ouvir:
Vai-te embora, zangão molengão,
Vieste para os alunos contar
Ou para fazer pim pam pum?
Não nos venhas desconcentrar.
Como já somos quase trinta
Não queiras ser um trinta e um!
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