Estou a preparar a apresentação de sábado. Tantas questões: Como estará o livro? Como vou reagir quando o vir pronto para ser visto e lido? Como reagirão os adultos e as crianças para quem cada minuto de escuta pode ser uma eternidade?
Mas também espero alegrias à volta de um livro feito, carinhosamente, a pensar nos mais pequenos. E nos adultos que vão ajudando a que os dias de todos tenham histórias simples e bonitas.
Que podem ser contadas por palavras ou por desenhos.
Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
A árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a da árvore
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses
António Ramos Rosa
Que fizemos das árvores? Era fácil pousar o ouvido num ramo que de longe trazia do fundo da infância os búzios encantados porque as árvores eram coisas que diante de nós estavam acontecendo num incrível passado Natália Correia
- Hoje tive um contratempo no take-away.
- A comida estava fria?
- Nada disso. Reutilizei um recipiente de plástico que usam para a sopa.
- E qual era o problema?
- Fizeram má cara porque consideram tara perdida.
- Mas é resistente e lavável.
- Claro que sim, e, na próxima semana, vou fazer o mesmo.
- Vais deitar ao lixo?
- Achas? Queres que os peixes ainda comam mais plástico?
- Não, não! Já temos também a nossa conta!
Era uma vez uma menina que, como todos os meninos e meninas, foi dando origem a várias histórias. Era uma vez uma avó que foi escrevendo algumas dessas histórias. Era uma vez uma amiga ilustradora que, com muito talento e muito carinho, as ilustrou. Era uma vez um livro que nasceu desse trabalho conjunto, que a Editora Lugar da Palavra acolheu, e que irá ser apresentado no dia 30 de março, às 11 h da manhã, na Biblioteca Municipal de Gondomar. Era uma vez um workshop que irá ser realizado no mesmo local e (quase) à mesma hora, para meninos e meninas, com a presença de familiares e amigos. Todos serão BEM-VINDOS!
- Gostava um dia de escrever um livro.
- Porquê, se já há tantos que as pessoas não leem?
- Acho que será como construir uma nova casa.
- Sim, isso é verdade.
- Uma casa arrumada e sempre com uma janela aberta.
Subo um
passeio branco alastrado de sombra,
luz e folhas caídas.
Pela mão vai minha filha,
juntos subimos rente ao fim da tarde.
Apertando-me os dedos, olhos nos olhos,
minha filha faz-me as perguntas de todas as crianças.
Seus olhos espelham os meus
e na boquita fresca vagueia o sorriso que outrora perdi.
Absorto, caminho rumo ao fim do tempo, ela, rumo ao princípio.
O meu poente roxo é a sua alvorada estridente.
Termino um pouco onde ela começa,
mas minhas mãos continuam nas suas.
Penso agora na morte sem angústia e na vida com outro empenho.
Minha filha vai comigo, seus olhos, seus gestos, seu sorriso,
lembrança de mim.
Vou partindo. Ela apenas chega.
A tarde cai e não é triste morrendo. Rui Knopfli
(Nasceu em Moçambique em 1932, faleceu em Lisboa em 1997)
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Sábado, o jornal Expresso dava a notícia que o juiz Neto Moura vai processar políticos e humoristas que o têm criticado pelas decisões tomadas em relação às mulheres agredidas pelos maridos ou companheiros. E não só em caso de adultério.Entre as pessoas que vai processar estão Mariana Mortágua, Joana Amaral Dias, Ricardo Araújo Pereira, Bruno Nogueira, etc.Mas as críticas estão a formar uma imensa bola de neve, porque têm sido frequentes as agressões a mulheres, muitas vezes até à morte.O referido juiz, escarafunchando em páginas cheias de violento bolor antigo, tem desculpado, nos seus acórdãos, muitos dos agressores - homens.De facto, este juiz não deveria ser processado?
Hoje li esta carta de Ana Sá Lopes e partilho-a.
Ana Sá Lopes
Editorial
PÚBLICO
3 de Março de 2019
'Carta ao sr. Neto de Moura
O senhor, vindo lá das cavernas de onde fala,
está a infringir a Constituição, mas nem dá por isso – assim como os
seus colegas que lhe aplicaram a advertência. Os senhores metem-me medo.
E não há sociedade mais doente do que aquela que fica com medo da
Justiça.
Senhor Neto de Moura. Não nos conhecemos,
felizmente. Digo felizmente, porque, embora o jornalismo me obrigue, de
quando em vez, a contactar com as catacumbas da sociedade, prefiro, como
dizia o famoso Bartleby do Herman Melville, não o fazer.
A verdade é que gostaria de o processar. Não tenho muita paciência para tribunais e os juízes metem-me algum horror, porque já vi em acção alguns exemplares como o senhor.
Também não tenho muito tempo livre e a Justiça é lenta. Depois, é
verdade que não tenho muito dinheiro e, já se sabe, a Justiça é cara.
Eu tenho um problema de saúde: perante o asco, tenho vómitos. Às
vezes também tonturas. As últimas decisões que tomou provocaram-me
problemas de saúde. Talvez isso seja um motivo para o processar. Fico
literalmente doente ao ver a sua, vá lá, doença com as mulheres. O
prejuízo para a minha saúde dos seus acórdãos pode ser um motivo para um
processo.
O meu problema com situações asquerosas é uma razão porque evitei, até este momento, escrever sobre o acórdão em que o senhor invocou a Bíblia
e considerou exemplares – no sentido de lhe servirem de exemplo — as
sociedades que apedrejam as mulheres adúlteras para “acentuar que o
adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e
condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a
estigmatizar as adúlteras)” e por isso a dita sociedade “vê com alguma
compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado
pela mulher”.
O senhor, vindo lá das cavernas de onde fala, está a
infringir a Constituição, mas nem dá por isso – assim como os seus
colegas que lhe aplicaram a advertência. Os senhores metem-me medo. E
não há sociedade mais doente do que aquela que fica com medo da Justiça.
Eu sinto-me humilhada, vexada pelo senhor e a sua repugnante ideia de
“sociedade”, mulheres e adultério. Acho que o senhor não me respeita e
ofende todas as mulheres deste país.
O adultério não é crime, a
não ser na sua cabeça, que me abstenho de qualificar ainda mais. A
questão é que o senhor é juiz e põe em causa a segurança das pessoas,
desde que sejam mulheres. Isso ofende-me.
A ideia de lhe dar um
soco na cara até me pode passar, assim de repente, pela cabeça, mas não o
farei. No meu quadro moral e seguindo os preceitos da lei e
Constituição, acho que a violência física não é de todo desculpável –
nem contra um juiz que a desculpa'.
- Nem me lembro de um Carnaval assim.
- Sim, costumava chover mais.
- As tulipas até se desfolham com a secura.
- Também tenho de regar as minhas plantas.
- Temos estado demasiado distraídos a ver a banda a passar.
- Tenho andado a organizar armários e gavetas.
- Também gosto. Mas há alguma razão especial?
- Não quero dar trabalho um dia mais tarde.
- Ainda é cedo para pensar assim.
- Enquanto dura o Carnaval, sabe bem algum despojamento.