quarta-feira, 20 de novembro de 2024

As crianças

 

Ontem, vi o começo de uma notícia sobre a criança cuja ama foi filmada a dar-lhe banho de água fria. Pelos vistos, batia-lhe no rabo ao mesmo tempo. Quando ouvi o choro aflito e sem defesa do bebé, logo mudei de canal. Confesso que aquele choro me perturbou, ficou-me na cabeça e entristeceu-me a noite. 

Haver coragem para filmar uma cena assim? Seria por vingança ou posterior acusação? Ter coragem para assistir a tal cenário, sabendo que um ser indefeso estava em sofrimento não justifica o ato, na minha opinião. Mais justo seria retirar de imediato a criança das mãos da mulher que a maltratava. 

Por toda a parte, há crianças que sofrem. E que sofrem muito. E não devia ser assim.

São crianças quase andrajosas de Gaza cujas imagens nos entram em casa no dia a dia. E todas aquelas que não vemos, mas que sabemos que existem e que sofrem.

São as crianças que chegam em barcos cheios e periclitantes sobre as ondas e, como já aconteceu, morrem na praia.

São as que sofrem violações e outras formas tremendas de violência, expostas a situações de terror e morte perante a indiferença, tantas vezes, de governantes poderosos do mundo que, com todas as armas e bagagens, não se desviam nem um milímetro da ambição de salvar apenas a sua própria pele.

Felizmente, há crianças felizes, apesar do caos que vai grassando em muitas frentes, mas não podemos esquecer as que têm fome, sede e que vivem sem conhecer o direito mais que devido de ir à escola, de brincar, de viver em paz e sem bombas a rebentar-lhes a vida e a dos familiares que as deixam sós.

Fernando Pessoa disse que ‘o melhor do mundo são as crianças ‘. O pior é que milhões delas conhecem sobretudo o que o mundo tem de pior para lhes dar.


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Idade: 100 anos; Filhos: 5; Ordem para visitar!


Há muito tempo viúva, reza que do marido não terá tido muitas saudades, porque dele não ouvia nunca  palavras cor-de-rosa; para si, ficavam as mais cinzentas ou agrestes. Ou geladas como ventos de inverno.

Não assistiu, portanto, ao centenário da mulher, mas a festa fez-se a preceito. Como ela sempre desejara e programara. Queria os filhos, as noras, os genros, os netos e os bisnetos perto de si. Haveria um bolo bonito e grande e mais uns miminhos doces que lhe tinham oferecido e que queria que todos saboreassem. E, no meio da mesa, uma jarra com flores do jardim. Não as queria compradas porque são caras e vêm de outros países quando as tinha em casa bonitas e mais naturais.

Não haveria refeição completa. Não queria a casa em desalinho nem vê-los a lavar e a arrumar a loiça. Fazia 100 anos e o lugar deles era perto de si. Com tempo e livres de outros afazeres. Se Deus continuava a dar-lhe o dom de falar, de ver e de ouvir, tinha que desfrutar dessas dádivas que, desde pequena, tinha  aprendido a amar e a respeitar.

Estava feliz com todos os que tanto amava à sua volta. Sorria, fazia perguntas, contava peripécias do passado, queria saber projetos de futuro…

Sentia-se uma árvore criadora de fortes e maravilhosos ramos que lhe davam segurança, alegria e a faziam acreditar no futuro. E um pedido irrompeu, em modo decidido de ordem:

- A partir de agora, quero que vocês, meus filhos, me venham visitar todos os dias. 

- Temos de vir todos, mãe, mesmo ao sábado e ao domingo?

 - Porque não? Estão todos reformados, por isso não têm horários a cumprir. E organizem-se para não virem todos ao mesmo tempo. Quero poder falar à vontade com cada um.

- E nós  também temos de vir, perguntou, timidamente, um bisneto.

- Claro que não! Acham que eu não conheço o mundo? Vocês, os novos, têm o tempo muito preenchido e ainda bem que assim é. Estão a construir o vosso futuro.


E o pedido/ordem foi cumprido, depois de feito um pequeno calendário de visitas para não haver coincidências. Agora, que a matriarca está prestes a fazer 101 anos, ninguém sabe se novo pedido surgirá. Talvez se fique pela confirmação da visita diária dos filhos. Uma das noras, habitualmente bem humorada, já disse: uma coisa é certa; continua a ordem para visitar!


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Não tenho paciência!


Tenho cada vez mais paciência para algumas coisas, mas, para outras, tenho cada vez menos. O tempo em que ficava, paciente e silenciosamente, à espera que a minha mãe terminasse a sesta para me ajudar a fazer roupinha para as bonecas já desapareceu no emaranhado dos tempos.

Pois bem, não tenho paciência para quem fala, fala, fala e exibe muitas certezas, só elas espertas e certeiras, tipo descoberta da pólvora. Na certeza de que os outros pouco sabem e andam, coitadinhos, de olhos tapados.

Não tenho paciência para descrições minuciosas, como as da experiência da vida militar, quase sempre em discurso direto ou indireto, que se prolonga por muitos pormenores que se cruzam e dos quais vou desligando, embora permaneça no lugar. O olhar é que se vai perdendo. O que vale é que não o vejo!

Não tenho paciência para textos manuscritos com letra incompreensível. Há muitos muitos anos, no tempo da terrível guerra colonial, uma jovem deixou de ler as cartas do namorado, porque eram longas e quase ilegíveis. Passou a escrever-lhe, ignorando, portanto, o que ele lhe dizia em letra que nunca quis melhorar. Não faltou muito para o namoro acabar. 

Não tenho paciência para quem gere o tempo apenas consoante a sua disponibilidade, sem pensar que os outros podem ter o seu tempo contado.

Não tenho paciência para quem faz longas descrições dos problemas do dia a dia e, quando termina e o interlocutor quer também intervir, logo olha para o relógio, diz que é tarde e vai-se embora. A menos que lhe ocorra outra coisa que passa a desenvolver, como se o tempo tivesse parado.

Não tenho paciência para quem encontra justificação para tudo o que diz e faz e se ofende à mínima palavra que logo julga ofensiva.

E tenho muito mais impaciências. Tantas vezes contidas, embora gostasse de, corajosamente, as revelar mais nalgumas circunstâncias. Trava-me, com certeza, esta ideia: quem nunca mói a paciência dos outros que atire a primeira pedra! Eu não sou de certeza.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Olhando as camélias

 






A propósito de comunicação

 

Tem-se falado bastante das dificuldades de comunicação de duas ministras, atualmente no governo: Margarida Blasco e Ana Paula Martins. As notícias dizem que foi contratada uma empresa de comunicação para as ajudar. E não deve ficar nada barato! Digo eu, que faço contas, mas não entro nestas contas.

A primeira tem optado, em sessões públicas, por ler um texto previamente escrito para não dizer nada que a comprometa ou logo possa ser desmentido,  e a segunda quase nem aparece nem se pronuncia sobre casos, alegadamente de incúria, do seu ministério, como é a mais de uma dezena de mortes, alegadamente também, por atrasos do INEM.

Pois bem, como as coisas da vida - as mais simples e as mais complexas - são como as cerejas, lembrei-me de uma aluna que tive há bastantes anos. Era estudiosa, atenta, assídua, responsável, mas entrava em grande stress se tinha de apresentar trabalhos para a turma. Tinha extrema dificuldade em colocar-se à frente dos colegas, olhá-los e expor as suas ideias. Ficava coradíssima, desviava o olhar, as palavras fugiam-lhe e quase causava dor ver a dor que sentia por falar em público, mesmo quando o público era bem conhecido e restrito.

Terminou o ensino secundário e deixei de a ver. Passados uns anos, encontrei-a já não sei onde, talvez num supermercado. Logo trocámos sorrisos e aproximações. Ela mantinha o seu ar de menina, de cabelos longos e claros.

Então, como estás? E a professora? Continua na escola? E o que fazes?

Então, veio a resposta que, anos antes, eu acharia improvável: tinha seguido a tropa e dava instrução a muitos militares.

E disse-o com firmeza, entusiasmo e sem corar. Eu, que não costumo corar, acho que corei e disse coisas do género: Que maravilha! E gostas? Então, fico muito contente.

E algum tempo depois despedimo-nos. Então, felicidades. Para si, também, professora.

E fiquei a pensar na transformação daquela ex-aluna, que parecia ter vencido a enorme timidez de adolescente. Não sei se teve ajudas, mas desconfio que não. Parecia frágil, mas foi encontrando força que muitos julgavam quase impossível.  Continuará a ser quase anónima, nunca será ministra nem secretária de estado, mas até podia dar uma ajuda. Só que ninguém estaria interessado.


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Não sei o que se celebra hoje, mas há sempre o dia para celebrar!

 

Hoje, acordei e levantei-me cedo. Quando tenho empregada, despacho-me mais cedo, para organizar as coisas que quero que ela faça. Por isso, já fui ao quintal apanhar couves e espinafres para sopa e empadão de bacalhau. A Mariana, que é brasileira, chama escondidinho ao empadão. Acho engraçado e sugestivo o  termo e agora uso-o de vez em quando. Ela também já aprendeu muitas palavras do português de Portugal que ela desconhecia. São boas estas trocas num mundo globalizado, embora, infelizmente, alguns líderes mundiais o queiram limitar.

Ah! E que bom é o chá de limão e gengibre que ela faz. Que bom estar gostoso - diz ela, pronunciando as sílabas com gosto e vagar, muito ao jeito brasileiro. 

E hoje, a passear em vai-vem no meu quintal, vi que os dióspiros-maçã estou quase no fim. Apanhei um, porque me sabe bem assim fresco e pouco maduro. E olhei as árvores que, em breve, têm de ser podadas. E a horta que, em muito pouco tempo foi invadida por trevos e mais trevos, amanhã vai ser preparada para receber outras hortaliças. Felizmente tenho quem o faça. Chama-se Alexandre, é simpático e generoso. E precisa de ganhar dinheiro.

Agora, ao meu lado, tenho crónicas do Expresso que quero ler. E um pouco mais do Diário Incontinuo, de Mário Cláudio, que comecei a ler há uns tempos.

Os meus dias vão sendo tranquilos e caseiros. Estou (confio que sim) a recuperar da doença que me surgiu no verão. Ao contrário de muitos amores de verão que depressa acabam, isto demora mais. Mas não faz mal se a vida continua e pode ser celebrada, ainda que as vivências sejam simples. Sem deixarem de ser quentinhas e boas. Como as saborosas castanhas deste outono.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Hoje celebra-se a preguiça!


Ainda muito pequena, ouvia maldizer a preguiça, um dos sete pecados mortais, que a minha mãe enumerava de cor muitas vezes para que o trabalho doméstico, que era obrigatoriamente partilhado pelas filhas (o filho, como era rapaz, não era contemplado!) fosse realizado na hora certa. E o que é certo é que havia o exemplo.
Pois bem, mesmo assim, a preguiça nunca me abandonou, embora qb, acho eu. Agora que estou reformada (reformulada, como digo às vezes por graça) ainda o sinto mais. Raramente estou sem fazer nada, mas aprecio os bocadinhos em que, no sossego da casa, sossego o corpo e o espírito. Costumo acordar cedo, mas não me levanto logo, ficando a desfrutar do bom quentinho que custa abandonar. Também não gosto de pressas nem pressões.
Será isto preguiça? E outros pecadilhos, como não fazer a cama em condições ‘para ficar a arejar’, deixar algumas coisas, que podiam ser feitas hoje, mas que ficam para amanhã, etc, etc, etc.
‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’ e o que eram apenas deveres agora também são direitos. E com conta, peso e medida ajudam a equilibrar o corpo e a mente, na tentativa de harmonia cada vez mais necessária nos dias conturbados que correm. 
Ouvir técnicos a falar do assunto e a validar momentos de preguiça reduz culpabilidades que ficam incrustadas e que demoram a libertar.
De uma coisa não posso abdicar: caminhar mais. Para já, vou ao meu quintal, que é estreito mas comprido, apanho ar e caminho um pouco. ‘Isso é pouco’ - ouvirei eu na próxima consulta no hospital. 
O melhor é vencer então a preguiça e começar hoje a alargar o espaço de caminhada. Bora lá! E assim não oiço esse raspanete que, ao contrário da preguiça, nunca (me) sabe bem.



quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Imaginem quem vai governar!

 

Nesta noite de leitura dos resultados das eleições, as televisões estavam ao rubro, patente que estava o mapa das votações nos Estados Unidos. A maioria dos votos ia caindo  no partido republicano, pintando o quadro a  vermelho.

O azul democrata era tímido e quase marginal.

No início, o candidato republicano falou de fraude, mas logo deixou de o dizer quando viu que era ele o favorito nas urnas. O seu ego, mais alto do que a sua torre em Nova York, subia altíssimo, o que evitava qualquer invenção de queixa.

Conhecidos eram os insultos, mentiras, falcatruas, subornos, misoginia, fuga ao fisco, centralidade em si para resolver os seus problemas com a justiça,  arrogância, ganância pelo poder,  desrespeito… tanta coisa que causa estranheza ao ver tanta gente a votar em pessoa com estes comportamentos.

A candidata Kamala foi recorrentemente ridicularizada por ele. Muitos desses insultos caíam no saco roto da normalização.

Hoje ouvi uma ex-emigrante nos Estados Unidos, durante longos anos, a dizer uma coisa interessante: Muitos eleitores de Trump não leem, rejeitam o contraditório e apenas ouvem o que o seu partido lhes grita e que é apenas o que conhecem.

Oxalá o envelhecimento do candidato vencedor lhe traga maior compostura e menos postura de reality show, que tanto exibe.

Contentes estarão os trumpzinhos que o vão imitando logo que haja palco, como em Portugal também já existe.

Descontentes estarão muito jovens que votaram em Trump. Só que o descontentamento vai demorar algum tempo a chegar. A menos que a normalização de atitudes e linguagem rude e boçal não os traiam ainda mais.