Companheira
do sol e das raízes, cheguei à grande cidade. Numa mão levava o
diploma, na outra, o medo. O resto era a história antiga da minha
solidão e da minha esperança...
A
escola que me deram não era um desses poéticos lugares, brancos e
cheios de flores com que sonhamos no fim do curso: era um velho
primeiro andar, de uma rua suja de sal, pregões e humidade. Os rapazes
que me deram também não tinham nada de comum com esses meninos de bata
branca, normais, nos primeiros dias de aula, e que as mãezinhas nos
entregam como se fossem de porcelana.
Lembro-me desse nosso primeiro encontro, tão comovidamente, que receio não encontrar a palavra exata para o esboçar.
Abri
a porta e eles entraram. Eram quarenta e cinco e faltavam carteiras.
Faltavam muitas carteiras, mesmo quando os sentei três a três e pus
cinco na mesa que me destinaram para secretária. O diretor chegou e
disse: — Este é o seu reino e aqui tem os seus «meninos». E sorria. — Se tiver sarilhos –
há de tê‑los, mas não estranhe – a esquadra da polícia fica no fim da
rua. E eu estou ao seu dispor. Para as necessidades imediatas, aqui tem
isto. Tem de escolher desde o princípio: ou a Senhora, ou eles. Sem
complacências, se quiser sobreviver. Lamento dar-lhe a escória. Mas,
paciência.
Desceu a escada.
E eu fiquei ali, face à nova aventura.
O
silêncio que me envolveu era um silêncio pesado, expectante. E, no
meio do silêncio, eles ali estavam, na manhã que nascia. Esculpidos em
vento e mar. Vinham dos barcos ancorados no cais, do bairro de lata, de
sabe-Deus-donde. Traziam nas mãos, em vez de mala e livros – não sei
porquê, mas traziam – folhas de plátano e ramos de amendoeira florida. O
outono dourava-lhes os cabelos. Eram sementes vivas da mais autêntica
liberdade e não sabiam nada de preconceitos, nem de palavras, nem de
coisa nenhuma.
Olhei-os
também em silêncio. Um por um. Longamente. Depois, peguei na régua que
o diretor acabara de oferecer-me como apoio e dei-a ao que me pareceu
mais velho: Toma! Vai atirar fora. E depois, não sei o que lhes
disse. Mas a fome de ternura era neles como o sol, a chuva e o
desconforto. E como éramos primários, pobres e sozinhos, estabelecemos
desde aquela hora um entendimento lúcido e discreto.
E foi assim que ficámos solidários e Amigos – Para – Sempre.
Aprendi então que a Verdade é uma palavra real.
E a Lealdade, também.
Depois,
muitos vieram: da Europa, da África, das ilhas perdidas do Atlântico.
Mas ali, na escola húmida e despojada, é que aconteceu o milagre que
nunca mais se repetira.
Tenho-me
perguntado muitas vezes porquê. E cada vez vou tendo mais a certeza
que o excesso de conforto destrói o Rosto Iluminado do Homem. Aqueles
não tinham, não esperavam, nem pediam nada: por isso, estavam
disponíveis para tudo. Os passeios que demos, as notícias que
comentámos, os poemas que lemos, a vida que conscientemente os ajudei a
desventrar, foram a sua primeira riqueza e fizeram crescer na
«escória» uma branca flor de fraterna alegria.
Foi
como se um vento de loucura nos tivesse perturbado a todos, e o mundo
estivesse suspenso do que fizéssemos. E nas paredes sujas da sala,
pintámos o sol e pássaros verdes. E nos buracos dos tinteiros partidos
nasceram flores. Eles eram a Terra quente e aprenderam a amá‑la também.
E a pobreza que os esboçava começou a ser um pretexto, não para a sua
derrota, mas para a sua dignidade e a sua força.
A
alegria daqueles rapazes contagiava os indiferentes e as pessoas,
muitas, muitas: poetas, professores, pintores, operários, sentiam que
junto deles as manhãs eram mais claras e a fome mais terrível. Hoje,
alguns serão operários honestos, ardinas apressados, vendedores
ambulantes; outros serão marinheiros, outros, sei lá o que serão! Sei
lá o que a vida fez deles!
Estas
páginas são uma homenagem que lhes devo. Guardei-as, dia após dia, ano
após ano, até os perder nos novos caminhos que tive de pisar, como um
testemunho. Oxalá alguns deles possam ler estas linhas e reencontrar-se
nelas.
Não
eram génios, nem poetas, nem meninos-prodígios. Eram filhos de
pescadores, de varinas, de ladrões-de-coisas...
essenciais-ao-dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos
barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio.
Alimentavam‑se de um bocadinho de pão, de um peixe assado e às vezes
de água. Apenas. Tinham oito, nove, dez, onze, quinze anos, mas
conheciam as mil maneiras de escapar aos polícias, de viajar de borla,
de sobreviver.
Os
dias eram-lhes duros e comprados com muita coragem e destemor. Por
isso custei a entender – ENTENDI!? – como a Poesia foi para eles tão
violenta e tão fácil. Pediam para fazer poemas, como quem pede o pão da
fome. A princípio a medo, ingénuos. Depois, a mergulharem na aventura
da palavra com uma dor e uma lucidez já adultas.
Quando
expus a primeira coletânea de textos destes rapazes, ilustrados por
alguns dos nomes mais válidos da nossa pintura, o ambiente que cercou a
exposição, ao verem a idade dos autores, foi de suspeita e dúvida.
Quando eles apareciam, desgrenhados e sujos – a hilaridade era quase
completa. E eram eles que me confortavam, soberanos: —Deixe lá. Têm a cabeça cheia de vento. Não percebem nada.
E ficava tudo certo, outra vez.
Mas
ensinaram-me que, quando se é humilhado naquilo que em nós é claridade
e certeza, aprende-se mais depressa o sentido exato da liberdade, da
paz, do ódio, do amor e do ridículo do quotidiano. Eles revelaram-me
que a miséria transforma as crianças, mais que os adultos, em anjos
implacáveis de lucidez, e que a fome os ateia e lhes faz crescer nos
olhos brancas e terríveis asas de sonho ou destruição.
E
há, nestes anjos de fogo, uma voz oculta e violenta em que é preciso, é
urgente, meditarmos. Ela pode denunciar, construir ou semear a
alegria, a vergonha ou o remorso.
Ela pode ser a semente da Esperança, da Paz entre os homens.
Ela pode ser o ódio.
Ela pode ser o Amor.
Maria Rosa Colaço
A Criança e a Vida
Lisboa, Ed. Ulmeiro, 1996
(Adaptação)