quarta-feira, 27 de abril de 2022

Hoje lembrei-me de Maputo

 

Há mais de vinte anos, passei uma semana em Moçambique - no Maputo. Estava em África pela primeira vez. Para além de muitos momentos vividos nessa cidade e que não esqueço, recordo-me da conversa com  um jovem professor - muito alto e muito magro - que não tinha dinheiro para comprar qualquer livro, mesmo que precisasse muito dele. Quando os livros de que necessitava estavam disponíveis na biblioteca, requisitava-os e então podia usá-los durante o período permitido. Para ele e muitos mais, o livro era assim um objeto útil, precioso, mas quase inacessível. E dizia-o com um ar triste numa larga avenida com muito artesanato, algum vento e o sol quase esmorecendo. Na altura, passavam mulheres de capulana e bacias de laranjas à cabeça. Os olhos eram convocados por tantas pessoas e por tantas coisas, mas, passado todo este tempo, prevalece a imagem do jovem professor que não ganhava para comprar um livro que fosse.


segunda-feira, 25 de abril de 2022

O Primeiro

 

Atravessámos o rio e fomos caminhando até ao quartel da Serra do Pilar. Vejo ainda a multidão a crescer com olhos incrédulos e palavras hesitantes - tal como nós. E inquietações. E dúvidas. E questões.

O regime caiu? Vivemos em liberdade? Já podemos falar mais à vontade? Vamos deixar de ter tanto medo?

Íamos de mãos dadas e tu falavas da guerra colonial que conhecias. Dizias acreditar que ia terminar e assim não haveria tantos mortos, muitas vezes sem saberem porquê. E que os jornais censurados diziam ser mortes por acidente, escondendo que eram vidas perdidas em combate.

E eu lembrava-me de poemas que lia na biblioteca onde tantas vezes vira outros jovens a entrarem de repente e a sentarem-se, como se estivessem a ler ou a estudar, e logo aparecer a polícia à paisana que os levava sem qualquer explicação.

E do professor de história que estava a responder a perguntas na aula e que  foi admoestado por permitir a infração da lei do silêncio por parte dos alunos.

E da palavra medo que fazia parte dos meus dias, não sendo nada politizada, como a grande maioria das pessoas, muitas das quais nem iam à escola porque tinham de trabalhar em idade de brincar. Medo da polícia, medo da pide, medo dos trovões, medo dos castigos de Deus, medo dos poderosos, medo dos outros...

Nesse primeiro 25 de Abril, muita gente tinha o transistor encostado ao ouvido para ouvir as notícias de Lisboa. Era uma revolução? Era uma revolta? E «depois do adeus»?

Havia espanto e muitas interrogações nos olhares, mas pressentíamos a mudança, ainda que tardia.

 

domingo, 24 de abril de 2022

Aurora

 
Há dias veio visitar a D. Rosinha. Quando chegou, disseram-lhe que ela estava a descansar. Não se conformou - não gostava de se conformar - com um grande ramo de flores na mão.
Sorridente e empática, justificou a vinda sem aviso.
Somos amigas há muitos anos. Estou cá de passagem e queria vê-la. Daqui a dois dias, volto para França.
Mas eu não conheço a senhora.
Diga-lhe que é a Aurora.
Voltando-se para o neto:
Anda-me buscar daqui a duas horas. Já não falo com a D Rosinha há anos.
Daí a pouco, estavam na sala a falar, já com as flores na jarra e um tabuleiro com chávenas de chá quentinho.
Que contente estava por estar ali. Não sabia o que lhe parecia já não visitar as manas Felgas. E como lhe custava saber da velha casa agora vazia. Que tristeza. E até a Lurdinhas morreu - dizia com mais pausas nas palavras. Sempre a ajudar as irmãs para que nada lhes faltasse.
Como estava a família em França? Estava bem, mas mais pequena, infelizmente. Sabia, com certeza, das perdas que tivera. Foi como lhe se lhe tivessem cortado o coração aos bocados. O primeiro foi o neto: um homem feito. E bonito. E tão carinhoso. Sempre bem disposto. Depois os dois filhos, os únicos rapazes que tinha. Ficaram as quatro raparigas.
O último foi o seu Zé, a amada companhia  de tantos anos. Ainda nem acreditava que já não tinha a presença próxima dele.
Não, não vivia com nenhuma filha. Elas tinham o seu trabalho e a vida delas e nunca gostou de ser pesada aos filhos. E viviam todos perto.
Claro que sabia que os 91 anos, que tinha feito no dia anterior, não eram brincadeira, mas sentia-se bem sozinha e, graças a Deus, tinha autonomia e ânimo todos os dias ao levantar e assim continuava pelo dia fora.
Também não precisava de muita coisa. Cozinhava, arrumava o que tinha de arrumar, ia ao cemitério todos os dias, ia tomar um cafezinho de vez em quando, falava com as madames vizinhas, os filhos telefonavam e visitavam-na amiúde ou ia a casa deles. Ah, e gostava muito de ver a televisão à noite.
Ai, D. Rosinha, como me podia esquecer do dia em que emigrei para França para ir ter com o meu Zé. Eu ainda não tinha feito 30 anos e levei os 5 filhos comigo, uns ao colo, outros pela mão. Como íamos a salto, até riachos tivemos de atravessar pelo nosso próprio pé. E como eles eram muito pequenos, não percebiam por que nunca mais parávamos de andar. Tínhamos passadores à nossa espera mas deixavam-nos ficar em sítios que  ficavam mais longe do que o inferno e ermos que nem lembrava ao demónio. Quando vimos o meu Zé à nossa espera, chorámos  todos como madalenas. E eu, que nem sou muito de lavar a cara com lágrimas, agarrei-me ao meu homem e fiquei abraçada a ele toda a noite. Os meninos adormeceram que nem anjos cansados mas felizes.
Se vou estar aqui muito tempo? Volto amanhã para França. Vim visitar a minha filha que vive em Portugal e ela quis festejar o meu aniversário.
O meu neto já me deu um toque. Valha-me Deus, o tempo passou tão depressa e já passaram duas horas. 
Fiquei tão feliz por termos falado. Já não nos víamos há tanto tempo, D. Rosinha. Só tenho pena é de não ver as suas irmãs. Éramos tão amigas. E o meu Zé fazia-as rir e depois dizia-me que era para elas não perderem o hábito. E a Lurdinhas era a que se ria mais e dizia que a casa delas era o Vaticano, porque só se rezava. Era tão engraçada. 
Nem sabe como estou contente por ter falado este bocadinho consigo. Sabe que, apesar de tudo o que já me aconteceu e de todas as dificuldades que vivi, tenho muitas alegrias todos os dias.
Se eu quero voltar para cá um dia?
Não, D. Rosinha, tenho lá os meus. Já parece a nossa terra. Só espero é que não nos mandem embora e se esqueçam dos nossos mortos que também lá deixaram o seu trabalho. Já lá vivi mais anos do que em Portugal. E, quando morrer, quero ficar ao lado do meu Zé. Ele deve estar farto de estar sozinho, mas quero que espere ainda algum tempo. Não tenho pressa.
Claro, D. Rosinha, a gente tem de se rir. E penso no que ele me dizia muitas vezes, que eu era a luz dos seus dias.
A luz da aurora.
Aí que essa teve graça, D. Rosinha. Por acaso gosto muito da luz da manhã, para não dizer de todas as horas. Deus queira que a luz continue.

 

terça-feira, 19 de abril de 2022

Um festival de tulipas (ou túlipas?)

 

Estas fotos vieram de Londres. Foram tiradas a semana passada em Hampton Court.


domingo, 17 de abril de 2022

Páscoa

 
Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.


Miguel Torga, in Diário XVI

 

sábado, 16 de abril de 2022

Atraso no namoro em domingo de Páscoa

 

Sem compasso, não era dia de Páscoa. Logo de manhã, ouvia-se o tilintar da campainha, embora ainda distante. O branco das opas também se avistava ao longe. Talvez ainda chegasse de manhã.

A manhã avançava e às vezes o dia aquecia. Quando começava a cheirar ao assado bem temperado e tostadinho, abrandava o som festivo das aleluias. Devem estar a almoçar e, se calhar, vão demorar. Oxalá não demorem muito.

E quem olhava mais para o relógio eram os rapazes e as raparigas. Eles e elas queriam namorar, porque a tarde avançava. Mas ninguém arredava pé. Vinham para a rua, tentavam adivinhar o tempo que faltava até vir o compasso e vociferavam até se entrava nalguma casa e demorava mais tempo.

Quando o compasso chegava com a Cruz que era dada a beijar, a folhinha com as orações, o saco das esmolas, encaminhando-se para as flores no chão e as colchas melhores à janela a darem as boas-vindas e a celebrarem o Senhor Ressuscitado, já a tarde ia quase a meio.

Era domingo, dia de namoro, e o tempo era pouco para mais delongas. Mas o ritual, esse, era cumprido.

Daí a nada, os jovens desapareciam e o toque das campainhas ia-se afastando. 

Talvez para o ano, o compasso viesse de manhã.

 

Conversa com amêndoas dentro

 

- Filha, põe amêndoas na mesa da sala para oferecer amanhã que é domingo de Páscoa.

- Oferecer a quem, mãe?

- Às pessoas do compasso.

- Mãe, devem ter mais sede do que vontade de comer amêndoas doces.

- Assim, podem dar às crianças.

- Mãe, felizmente as crianças já não andam atrás do compasso a pedir amêndoas. 

- Pois não. Já não as deixam comer açúcar.

- ...

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Sexta-feira Santa

 

Quando eu era pequena, ía com a minha mãe às cerimónias de Sexta-feira Santa, que começavam às três da tarde. A igreja estava sempre cheia e engalanada com panos roxos que a escureciam e aqueciam. O padre subia, às vezes com dificuldade pelas vestes e pelo peso da idade, os degraus de pedra estreitos até ao púlpito  e de lá fazia o seu sermão. Os fiéis ouviam-no em silêncio que era interrompido por tosses, por algum bocejo logo contido, por ais ou pelo movimento junto de alguém que se sentia mal e tinha de vir cá para fora apanhar ar.

Eu nada entendia do sermão e agora penso que não era só eu. Mesmo as pessoas mais velhas nem sempre o compreendiam, mas era um ritual a que não queriam faltar. Era a sua via sacra, uma forma de levar a sua cruz ao calvário.

Amanhã, se puder, passarei pela igreja. De certeza que está mais arejada. Ainda bem.


Páscoa

 

Quando éramos pequenas, ela, de pele muito clara, usava óculos de lentes grossas e o cabelo era curto, loiro e aos caracóis. Eu era mais morena, tinha uma trança grossa, negra e comprida. Não brincávamos muito porque ela vivia na rua principal onde passava, de quando em quando, um automóvel. Eu morava junto a um largo da aldeia onde os carros eram de bois, ronceiros e cansados.

Encontrávamo-nos na catequese na casa da senhora Micas Fandinga, tecedeira e catequista. Quando não estava a tecer mantas, tapetes e passadeiras, nos dias bonitos de sol, víamo-la sentada num banquinho no quintal a coser à mão o colchão que encheria de palha no outono.

Se as nossas mães nos deixassem, chegávamos mais cedo, corríamos e brincávamos, enquanto a catequista não nos chamasse a todos para nos sentarmos no banco baixo e corrido e dizermos de cor a lição do catecismo, já sujo de tão antigo e folheado, enquanto os seus pés e mãos faziam trabalhar o tear.

O tempo passou rápido, enquanto a vida foi acontecendo.

Ela partiu há dias. Não sei se chegou a ver as flores branquinhas e miúdas da Páscoa que a chuva abundante ajudou a florir. Já estava no hospital há mais de um mês. Na cerimónia, o padre confundiu-lhe o nome várias vezes. 

Dei conta como toda a gente, apesar de estar a recordar as correrias de quando éramos pequenas, enquanto ouvíamos o tear da catequista.

Nesse tempo, as confusões da idade nem existiam nem se esperavam. Festas como a Páscoa, sim.


 

quinta-feira, 14 de abril de 2022

"Ó sino da minha aldeia"

 


"Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.

 

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

 

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.

 

A cada pancada tua

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.

 

Fernando Pessoa

 

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Empatia

 

Consciente de que a empatia nem sempre é fácil, ultimamente, a palavra tem-me visitado várias vezes. Talvez por conhecer de perto faltas de empatia ou porque em diferentes situações também não tive essa capacidade que facilita a comunicação entre as pessoas, aproximando-as, tornando-as mais felizes e menos sós.
Num dos últimos episódios de "Os filhos da madrugada", na RTP 3, a entrevistada - Luísa Semedo, nascida em 1977, que viveu uma boa parte da sua vida no bairro da Serafina, em Lisboa, que se doutorou na Sorbonne e que é professora de Filosofia numa escola secundária em França - referiu-se à empatia dizendo que era a capacidade de nos pormos na pele dos outros, sabendo, porém, que os outros têm a sua própria identidade. Gostei de ouvir esta última parte porque ser empático, sentir a dor ou a alegria do outro não é invadir a sua liberdade ou a sua autonomia nem agir em sua vez.
Já não sei se foi a este propósito que Luísa Semedo referiu o importante papel dos outros na sua vida, nomeadamente daqueles que participam da evolução do mundo através de trabalhos, muitos deles realizados coletivamente, mas que têm um enorme valor, podendo marcar quem os conhece.
E dei comigo a pensar como os blogues que sigo - não são muitos e, nos últimos tempos, não os frequento de forma tão assídua como eu gostaria - são importantes para mim e me permitem tantas aprendizagens, para além do prazer de os ler e da identificação ou empatia que sinto em muitos domínios.
Ou um blogue simples e despretensioso como o meu - que também nos últimos tempos tem andado mais silencioso - me permite bons momentos de interação em que a empatia está presente. Como é bom quando tal acontece. Obrigada.


quarta-feira, 6 de abril de 2022

Vale a pena ver

 

Os Filhos da Madrugada é um programa de Anabela Mota Ribeiro que passa diariamente, até ao 25 de Abril, às 8 horas da noite, na RTP3. Todos os dias há um novo convidado - alguém que nasceu depois do 25 de Abril e que se destaca pelo trabalho realizado.

Também está disponível na RTP play

Este cartaz corresponde aos convidados da 1ª série, em 2021

terça-feira, 5 de abril de 2022

Flores em tempo de guerra

 








domingo, 3 de abril de 2022

Mimosa

 

Quando hoje de manhã cheguei à velha casa, logo a vi a rebolar-se no chão ao sol e em plena liberdade. Passado algum tempo, já tinha desaparecido do pátio. É assim a Mimosa, de belo pelo amarelado e olhos desconfiados de verde fugidio. Um dia - há já uma data de anos - apareceu no jardim da velha casa e por lá ficou a morar, embora ninguém lhe conheça o poiso. Nem crias. Nem acompanhantes. Nem os dias que demora a regressar quando deixa de ser vista. 

Para muitos, é uma gata imprevisível que, de repente, vira feroz como onça. Quem não a conhece e, a confiar no nome, mima-lhe o pelo, mas logo recua no gesto pelo rosnar repentino do felino.

Com o tempo, habituou-se à companhia serena do senhor Delfim e aos restinhos do almoço que ele lhe põe com cuidado no pratinho verde. Seja onde for, esteja onde estiver, quando ela lhe pressente os passos, aproxima-se e vai ficando por perto, sossegada e constante, enquanto ele trata da terra e das plantas.

Comunicam como dois seres solitários e silenciosos que pisam a terra bravia que lhes amacia a vida, sem excesso verborreico.

Antes de eu sair da velha casa, chamei 'Mimosa'! Só para ver se ela estava lá. Não apareceu. Tenho para mim que nunca achou graça ao nome que eu própria lhe dei.