Diário à espera de melhores dias
Olhemos também a (quase) primavera que vai florindo!
Diário à espera de melhores dias
Olhemos também a (quase) primavera que vai florindo!
Diário à espera de melhores dias
Nota 1. Nos últimos dias, por dever de (um pequeno) ofício, li quatro livros de Luís Sepúlveda (também não são grandes), cujas capas juntei aqui ao lado, em 'Leituras recentes'. Os dois primeiros enquadram-se na literatura infanto-juvenil e gostei muito do modo como as histórias são contadas e pelas ideias positivas que se vão encadeando, como nesta obra onde há amizade, respeito pelas diferenças, entreajuda, curiosidade, amor pela vida, etc.
Nota 2. Já tinha lido há bastante tempo O Velho que lia romances de amor.
Nota 3. Nome de toureiro,
francamente, não me 'agarrou', de certeza por falta de concentração da minha parte. A intriga é complexa. Trata-se de um roubo de moedas muito valiosas, durante o tempo do Nazismo. Passados muitos anos, após a queda do muro de Berlim, dois homens diretamente implicados no roubo tentam, separadamente, recuperar o tesouro.
Mesmo assim, apesar de não ter aderido por completo à história, li o livro todo. Não é muito extenso e tenho tentado não deixar os livros a meio. E às vezes somos surpreendidos por páginas ou passagens que nos 'chamam' e nos concentram.
Nota 4. Luís Sepúlveda está a ser homenageado nas Correntes d'Escritas 2021, na Póvoa de Varzim, onde esteve presente no ano anterior. O escritor nasceu em outubro de 1949, no Chile, e faleceu em Espanha, em abril de 2020. Homenagem bem merecida.
Diário à espera de melhores dias
Nota 1. Árvores floridas anunciando a primavera que
germina e os frutos de verão que se desejam.
Quadragésimo segundo dia
Nota 1. Há pouco, ouvi um homem velho, que vivia num lar, a propósito das vacinas que já todos tinham tomado. Dizia-se feliz por isso, mas muito triste quando recebia visitas da família. Então, porquê? Quiseram saber. E ele logo respondeu: - Porque não os posso abraçar.
Nota 2. Está confinada em casa, como milhares e milhares de outras pessoas. Não recebe ninguém. O filho vem só de vez em quando, desde que se separou da mulher, e nada de aproximações para manter a distância física recomendada. Os netos deixaram de vir, porque, dizem, convivem com amigos e podem espalhar bicharada. Pensa como dantes era feliz sem saber, dando e recebendo abracinhos. Agora, o corpo parece gelar-lhe de solidão. De vez em quando, fala disto ao marido, ele olha-a com apressada compaixão, porque há sempre um jogo de futebol que vai começar e que ele quer ver. Um dia, sozinha, cruzou os braços, apoiou as mãos nos ombros e aconchegou-se num abraço.
Nota 3. Num grupo do whatsapp, alguém escreveu ao saber que as notícias sobre covid-19 tinham melhorado: 'Quando puder, vou abraçar à maluca'. Logo surgiu outra mensagem ainda mais divertida: 'Comigo, muita gente vai ficar pisadinha'.
Nota 4. Felizes os seres vivos que se podem abraçar, ao sabor do sol, da chuva e do vento.
Quadragésimo primeiro dia
Nota 1. Há dez dias, e para variar, mudei o nome desta página e agora, passados mais dez dias desta quarentena ou confinamento, mudo-o outra vez. Mesmo variando, a palavra 'variante' não me lembra tanto as estirpes de covid-19, nem as estradas que dantes se podiam percorrer à vontade, mas que agora nem por isso. Como estaremos daqui a dez dias? Haverá mudanças? Haverá novas variantes?
Nota 2. Partilho agora o pequeno texto que escrevi em janeiro, e que foi publicado este mês na coletânea Mimos de fevereiro, com a chancela Mimos e Livros, 2021:
Segundo
Chegaste em fevereiro. Logo no primeiro dia. Logo ao início da tarde. De sol e de luz, apesar de ser fevereiro. Não havia chuva nem vento, nem o céu estava cinzento, como é comum dizer que acontece neste segundo mês do ano.
Nem sempre as verdades feitas se cumprem. Às vezes desdobram-se. Como eu me desdobrei. Como tu te desdobrarias anos mais tarde. Como já me tinha desdobrado dois anos antes noutro ser amado cuja voz eu ouvia, nesse dia, pelos corredores brancos do hospital. Ou era a saia azul que dançava em alegre e despreocupada correria?
Perguntaram-me à chegada: É o primeiro? Não, é o segundo, respondi eu. Sem saber se era menino ou menina, porque o tempo só o anunciava na hora da abertura à nova luz. Dei-te um nome que também a prenuncia(va).
E serias sempre serena e calma, firme e corajosa.
Recordo tudo ao segundo desse mês segundo, desse nascimento segundo, dessa luz segunda que se uniu à primeira, clareando ainda mais os meus caminhos, já iluminados pela bênção anterior.
É ao segundo que o círculo se desenha na memória:
Chegaste em fevereiro. Logo no primeiro dia. Logo ao início da tarde. De sol e luz, apesar de ser fevereiro. Não havia chuva nem vento...
... e abrias nova janela celebrando o claro firmamento.
Nota 3. Que novas janelas se vão abrindo, porque bem precisamos delas. Felizmente, e para variar, hoje está um bonito dia de sol.
Quadragésimo dia
Hoje passei toda a manhã com a minha mãe e, mais uma vez, apreciei o quadro. Ela tem vários gatos que vão nascendo, aparecendo e ficando. Os que tem agora são quase todos irmãos e a mãe também lá mora. O pai é que não deve ser o mesmo, porque, de vez em quando, a gata esquiva-se sem dizer água vai. Só não sei se vai e vem em noites de lua cheia. Ora, a minha mãe também tem um canário que foi dado por dois bisnetos no Natal. O canário é muito bonito, muito cantador, de cor rosada e vive numa gaiola que está no parapeito da janela da cozinha que dá para o pátio. Os gatos andam sempre por ali porque é também no pátio que têm o abrigo. Quando está sol - como esteve hoje - saltam para o parapeito exterior da janela, levantam ufanamente a cabeça e não arredam pé, ou melhor, as patitas, num cenário de paraíso à janela. O canário baloiça, o gato esfrega a pata no vidro, o sol vai entrando, o cantar do pássaro vai-se ouvindo...
Enquanto fazia o almoço e a minha mãe dormitava, eu ia apreciando aquela aproximação quase de primeiro namoro. Até poderia dar-lhe um título: idílio ao sol!
Ou, como o tempo está incerto, talvez outro que o olhar e os dentes afiados do felino me sugeriram: o sol é que nos une, mas ainda bem que há o vidro da janela que nos separa!
Trigésimo nono dia
Nota 1. Há flores que nascem em sítios quase improváveis, mas que não deixam de ser flores. E bonitas. E quase únicas. Estas nasceram há poucos dias num parque, perto do centro de Londres.
'A flor que vem me lembra
A flor que é quase igual
A flor que muito pensa
A flor que fecha ao sol
Parece a mesma flor
Só muda o coração
Quando se unem são
A flor que inspirou a canção
Bela flor, pouco disse
Gémea flor, que cresceu no Rio
Bela flor, pouco disse
Gémea flor, que cresceu no Rio
Que dance a linda flor, girando por aí
Sonhando com amor, sem dor, amor de flor
Querendo a flor que é, no sonho a flor que vem
Ser duplamente flor, encanta, colore e faz bem
Bela flor, pouco disse
Gémea flor, que cresceu no Rio
Bela flor, pouco disse
Gémea flor, que cresceu no Rio
Oh, flor, se tu canta essa canção
Todo o meu medo se vai pro vão
Pra longe, longe que eu não quero ir
Mas deixe seu rastro pólen, flor
Pra eu poder te seguir
Bela flor, pouco disse
Gémea flor, que cresceu no Rio
Bela flor, pouco disse
Gémea flor, que cresceu no Rio'
Trigésimo oitavo dia
Nota 1. Os números de infetados e de óbitos por covid-19 estão a descer. Está a valer a pena o confinamento. Felizmente.
Nota 3. À noite, houve a primeira parte do festival da canção - aquele programa que agora pouca gente vê e que antigamente quase toda a gente via. Na altura, as opções também eram poucas. E era uma emoção a noite do festival nacional e ainda muito mais quando a canção vencedora ia à Eurovisão. E a tristeza que era ver Portugal ficar tantas vezes nos últimos lugares. O Salvador Sobral, há dois anos, e de uma vez por todas, fez esquecer muita coisa. Mas houve muitas outras músicas que ficaram.
Trigésimo sétimo dia
Nota 1. Ao serão (acho piada a esta palavra) de 26 deste mês, próxima 6ª f., vai haver o
lançamento online de mais uma antologia Mimos de... Estes referem-se a
fevereiro. No final da coleção, haverá Mimos de todos os meses do ano. Existem textos muito interessantes e as capas dos vários volumes também são bonitas, o que ajuda a colorir muitos dos momentos atuais, tão pintados de cinzentão.
Nota 2.
O vento nada mimou
enquanto a noite dormia
e muitos seres acordou
- desvairada correria!
E resolveu convidar
Noite, querias sonhar
mas só o vendaval se ouvia!
Abro a porta para ver
este constante soprar
e já apetece dizer:
Ó vento, e se parasses de correr?!
É sábado! Vai-te também confinar!!!
Nota 3. Um convite para quem quiser participar de outra coletânea - poesia ou prosa poética. Chama-se 'Livro Aberto' e vem de Alenquer. A iniciativa tem já várias edições, mas é a primeira vez que estou a participar. Podemos fazê-lo até final deste mês. Enviei dois pequenos textos em prosa poética, tentando mimar as palavras que escrevi. Os outros o dirão melhor do que eu.
Aqui vai o link para quem quiser ver ou participar:
https://m.facebook.com/groups/1596125733996271/permalink/2913404125601752/?sfnsn=mo
Nota 4. Sábado feliz para todos. Com mimos e com um livro aberto, se possível, e se for essa a vontade de cada um.
Trigésimo sexto dia
Nota 1 e única em dia único para os investigadores e amantes do espaço. Ontem, pelas nove da noite, aqui em Portugal continental, uma sonda da Nasa chegou a Marte, o planeta vermelho. As amostras que irão ser recolhidas pelo robô, que pousou numa cratera, chegarão à terra em 2031, permitindo ver a evolução dos minerais e sinais de habitabilidade naquele planeta tão distante. Alguns canais de televisão iam divulgando imagens do momento, também de júbilo dos muitos cientistas que tornaram possível a viagem.
A grande parte de nós, grande parte parte da comum Humanidade, continuará também, cá por baixo (ou ao lado, nem sei!) recolhendo amostras diárias dos sempre desejados sinais de vida. Sem deixar de olhar as estrelas (e não só), é claro!
Trigésimo quarto dia
Nota 1. Durante a manhã, andei a 'recadar', como uma das minhas filhas costuma dizer. A comida da cadela estava no fim, e também as batatas e as cebolas, queria ver se a minha mãe tinha tido reação à vacina covid-19, apetecia-me pão fresco, precisava de broa para fazer uma receita de polvo que vi na televisão... Quando cheguei a casa, pensei: vou almoçar e depois escrever umas notas para o meu diário. Porém, abri o computador e ideias - pouco mais que nenhumas. Só me vinham à cabeça as magnólias que tinha visto e uma tulipa que começou a irromper numa taça do pátio.
Nota 2. Liguei então a televisão. Falava-se de Cármen Dolores, que faleceu ontem aos 96 anos, deixando uma bela obra sobretudo de atriz e de grande leitora (diseuse) de poesia. Muitos elogios tem também merecido o seu lado humano. Rui de Carvalho, um colega de profissão e amigo da atriz, também ele com mais de noventa anos e de grande talento, interveio via skype e aconselhou: 'Gozem a vida. Vivam a vida'.
Nota 3. Poucos minutos depois, o resumo das notícias da uma da tarde: Covid-19, jogo FCP-Juventus de logo à noite, julgamento do pai e madrasta de Valentina. Desliguei o televisor. É que hoje, peço desculpa, quanto a estes temas, sinto-me negacionista. Sobre covid-19, vejo logo os números, um ou outro especialista e já chega; sobre o FCP, os prognósticos do fim e do início devem ser os mesmos; violência sobre crianças, não, por favor!
Nota 4. Depois do café, ficou um pouco de chocolate. Pronto, lá vou eu cair em tentação.
'(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates (...)'. Álvaro de Campos
Trigésimo terceiro dia
1. Comecei a ler o livro de Luís Sepúlveda: História de um caracol que descobriu a importância da lentidão, escrito, segundo o autor, para responder a uma pergunta de um neto: 'Por que razão o caracol é lento?' Não acabei, mas também não faz mal, fazendo jus ao título. A introdução é muito engraçada e as ilustrações, muito bonitas.
2. Terminei, ontem à noite, dois textos que mandei para o Concurso 'Textos de Amor' do Museu Nacional da Imprensa. Por mais pequeno que seja, nestes casos, custa-me sempre concluir. Ou porque falta alguma coisa, ou tem coisas a mais, ou está piroso, ou já não gosto, ou não tem interesse, etc, etc, etc. Depois, lembrei-me do que uma professora, que tive há muitos anos, dizia: 'Chega-se a uma certa altura e o que está está'. Por isso, depois de muita alteração e correção, lá mandei. Assim, não penso mais no assunto.
Ainda se podem mandar Textos de Amor até amanhã: http://museudaimprensa.pt/?go=semananamorados
3. Hoje fui com a minha mãe à primeira toma da vacina Covid-19. Para já, um acontecimento nas nossas vidas para que a vida não seja tão facilmente interrompida. Fomos ao Multiusos de Gondomar, um vasto espaço (do arquiteto Siza Vieira) com muito boas condições. A grande maioria dos utentes, que iam chegando para a vacina, eram idosos e vinham acompanhados de familiares mais novos. Alguns reconheciam outros, ficavam contentes e com muitas novidades para contar, o que também faz bem à saúde.
4. Também lá encontrei uma pessoa que eu conhecia e que acompanhava um familiar. Como não o via há muito tempo, perguntei: 'Então, a esposa?' Respondeu-me depois de uma ou duas pausas: 'Pois, estamos separados há cinco anos'. Rematei como pude, enquanto me ia lembrando que o melhor, de facto, é não fazer perguntas como a que fiz, ou outras tão ou mais inconvenientes: 'Então o bebé está para quando?', ficando a saber que o queriam, mas sem o conseguir! Ou outra também muito má: 'Que bom, vai ser mãe!', sendo logo esclarecida: 'Não estou grávida. Tenho é engordado bastante!' Desta vez, só fiz a primeira, felizmente, senão teria de tomar uma dose de sensatez!!!
Trigésimo segundo dia
Nota 1. Desculpa, mudei-te o nome, mas não deixas de ser o meu querido diário, neste tempo de confinamento. Gosto muito da rotina mas dispenso a monotonia. Já o deves saber porque nos encontramos aqui, diariamente, há mais de um mês. Passo a chamar-te 'Notas dos dias que vivemos', mas, para mim, não perdes a identidade. Nem para os nossos amigos, espero, que nos leem e com quem partilhamos muitos momentos de dias em que diferentes formas de calor humano são tão necessárias e tão bem-vindas.
Nota 2. E foi calor humano que senti hoje, ao abrir o blogue, e vi vários e bons comentários amigos. Ainda tinha um pouco de café quente na caneca. Estava a saber-me bem e ainda me soube melhor.
Nota 3. Ouvi há dias uma comentadora de televisão, a propósito de uma notícia de um jornal: 'No dia a dia, não tentemos fazer tudo'. Isto a propósito do stress que convém não aumentar. Concordei com a ideia, porque serenidade é precisa (mas às vezes deve ser tão complicado: teletrabalho, aulas dos filhos online, casas pequenas, só um computador ou nenhum, internet nem vê-la ou com falhas...).
Nota 4. Ontem li o livro de Luís Sepúlveda: História de um gato e de um rato que se tornaram amigos.
Nota 5. Hoje quero ler outro do mesmo autor. São livros pequenos e com muitas ilustrações, que também aprecio, embora qualquer criança desenhe muito melhor do que eu.
Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios
de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
(...)
'
Daniel Filipe, in 'A Invenção do Amor e Outros Poemas'
O poeta nasceu na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1925. Viveu 39 anos.