Uma noite, depois dos trabalhos habituais no quintal (a harmonia
das plantas ajudava-o a construir a sua própria harmonia), sentou-se na sala,
como de costume.
No copo, o vinho tinto exalava um colorido e calmo aroma.
Abriu o livro O tempo envelhece depressa,
de Antonio Tabucchi, mas logo o fechou.
Dirigiu-se à estante e pegou numa coletânea de poesia de
Fernando Pessoa. Mais uma vez, veio até ele o poema Tabacaria do heterónimo Álvaro de Campos:
“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos
do mundo
…”
Não conseguiu prosseguir. Apeteceu-lhe
chorar. Dentro de si, ouvia vozes antigas: um homem não chora!
Chora sim, por que não? E fala, e sente,
e sofre, e ri, e ama, e desespera, e espera, e acredita, e desconfia…
De dia, a repartição acolhia o
funcionário público exemplar; ao fim da tarde, a casa recebia o homem completo. Com as incompletudes que se lhe incrustaram à pele e à alma desde a infância.
E releu:
“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos
do mundo
…”
Encostou a cabeça no sofá e recordou as
peripécias do dia. E viu-se com uma infinidade de pessoas a quem se aplicavam, também, aqueles
versos.
Só os versos?
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