segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Um conto de Natal

 

Partilho este conto que escrevi para a coletânea, cuja capa reproduzo em baixo, com desejos de um

 Feliz Tempo de Natal! 

Também com luzes de semáforos que vão piscando e chamando a atenção para o que à volta delas acontece.



Maria Dolores Garrido 

À Isaura

O velho do semáforo

Aquele semáforo fazia parte do meu trajeto quase diário. Passava lá, no mínimo, três ou quatro vezes por semana, entre as nove e as dez da manhã. A essa hora, o velho lá estava, no separador entre as duas vias, junto da fila de carros que parava ao sinal vermelho, quase a chegar ao Porto. Nesse lapso de tempo, o homem tentava aproximar-se do maior número possível de condutores, mas não conseguia abordar mais do que dois ou três, porque logo aparecia o sinal verde e todos arrancavam o mais depressa que podiam para evitar perdas de tempo, sempre escasso na ida para o trabalho.

Vezes sem conta o velho também se aproximou de mim, inclinando-se para a janela do meu carro, saudando com a mão e sempre mostrando um sorriso. O homem é simpático e terá, como qualquer ser humano, uma história de vida - pensava eu e interrogava-me por que razão nunca tinha aberto a janela para falar com ele, mesmo que fosse só para lhe dar os bons dias. E, lá com os meus botões, ia pensando que fechamos tantas vezes as janelas aos outros e gostamos tanto que para nós sejam abertas!

Nunca o vi de mau humor ou contra alguém que, como eu, nem abria a janela, embora lhe sorrisse. Às vezes até aproveitava a pequena pausa entre o vermelho e o verde do semáforo para me ver ao espelho ou espreitar o telemóvel. Ainda assim, tentava corresponder à simpatia do velho, acenando, mas não de forma explícita, confesso, porque o seu aspeto andrajoso e sujo retirava-me a vontade de comunicar sem o vidro da janela de permeio. As suas barbas abundavam crespas e incertas e o cabelo mal se via porque usava um gorro escuro e espesso. O outono já tudo arrefecia.

Numa manhã de novembro, fria mas luminosa, disse para mim que já era tempo de dirigir algumas palavras ao velho. Tantas vezes ali passava, tantas vezes era saudada, tantas vezes me dirigia palavras que tinha também de retribuir. Podia ser só para dizer bom dia ou até amanhã, mas tornava-se urgente fazê-lo, abrindo a janela. Na viagem seguinte, quando  cheguei ao semáforo, logo apareceu o sinal verde e tive de circular o mais rápido possível, para evitar buzinadelas nervosas e vozes destemperadas. Ficaria para o dia seguinte. Teria uma moeda à mão.

 Nessa manhã, fiquei logo à frente da fila, diante do implacável sinal  vermelho. O homem aproximou-se do meu carro, mas ainda não foi dessa que abri a janela. Tinha-me esquecido da máscara e não queria enfrentar aquele respirar direto, durante a saudação habitual, sempre com muitos acrescentos: bom dia para si e também para a família e muita saúde que é o melhor da vida e muita alegria que faz muito bem à alma, etc etc etc. Sorri e arranquei logo que pude. Seguiu-se uma semana de vento e chuva. Durante esses dias de tempestade, do velho nem sinal.

Os dias foram passando sem eu chegar à fala com o homem. Porém, sempre no mesmo lugar, o velho mantinha-se afável e transmitia uma ternura imensa que lhe escorria do rosto aberto em sorrisos e das mãos em acenos. Podia sentar-se à porta de uma igreja, de mão estendida em jeito de miserável sofredor, mas não, aguentava-se ali ao tempo, exceto quando chovia, mantendo-se de pé, distribuindo mais do que recebendo mimos, aceitando a má disposição de quem, àquela hora, ainda não tinha aberto a caixa dos sorrisos ou então a mantinha fechada à chave há muito perdida.

Eu não podia continuar a adiar uma pequena mas carinhosa troca de palavras com o velho. Como o Natal chegava, esse seria o momento. Sem hesitações, decidi dar-lhe um presente para compensar a pouca atenção. Comprei-lhe bombons macios e saborosos. Postos em caixinha bonita. Sem laço para ser mais fácil abrir e evitar também o desperdício. Como reagiria ele quando a recebesse? Sorrisos haveria com certeza, palavras carinhosas sem dúvida, brilho dos olhos não faltaria... E talvez surpresa. Não devia estar habituado a receber prendas, para além das moedas.

Nessa manhã, pus a caixinha dos bombons no banco da frente, junto à carteira. Quando chegasse ao semáforo, se fosse das primeiras pessoas da fila, poderia dar-lhe o presente um pouco mais devagar;  se o sinal vermelho já estivesse no final, teria a possibilidade de lhe entregar rapidamente os bombons com votos de bom Natal. Se sobrassem uns segundos, ainda lhe desejaria muita saúde e muita alegria, tal como ele dizia sempre a toda a gente, mesmo que não lhe abrissem a janela.

Quando cheguei ao semáforo, fiquei em segundo lugar na fila e peguei logo na caixinha que já tinha à mão. Oh! Não, não podia crer, quem eu queria que lá estivesse não estava. Não havia chuva a impedi-lo de vir que o céu estava bem azul e transparente. Estaria o velho doente? Alarguei o olhar nos poucos segundos que me restavam antes de avançar e deixar seguir os outros, confirmando que ele não estava mesmo lá.

No dia seguinte, saí de casa convicta de reencontrar o velho no semáforo para, finalmente, abrir a janela e entregar-lhe o presente. Mas não, mais uma vez, ele não estava no seu posto habitual. Nos últimos segundos de sinal vermelho, vi passar uma mulher jovem com olhar sorridente, um telemóvel pequenino numa das mãos  e um saco de pão na outra. Devia morar perto. Ainda tive tempo de lhe perguntar pelo velho do semáforo. Morreu há dias, respondeu. Estava em casa e a casa incendiou-se, concluiu com ar pesaroso mas sem falso drama.

Ela devia ter sentido prático, porque, ao ver o sinal vermelho, nada mais acrescentou, afastando-se no seu passo pequeno mas ligeiro.

Eu é que não retomei logo a marcha ao sinal verde, o que me valeu uma grande buzinadela de um dos condutores atrás de mim. Assustei-me de tal modo que deixei cair a caixinha e os bombons espalharam-se todos pelo chão.

In Lugares e palavras de Natal, Editora Lugar da Palavra, 2021, p. 42/44

 


5 comentários:

  1. Boa noite
    Uma história comovente que não pode passar despercebida.
    Um bem haja.

    JR

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  2. Obrigada, Joaquim. O velho do semáforo existiu e era mais ou menos como o tento descrever. Pelo que sei, a morte dele teve a ver com um incêndio. O resto é ficção, mas, sempre que passo nesse semáforo, recordo-me dele.
    Uma noite bem descansada.

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  3. Que conto bonito, Maria. Ainda hoje passei ao velhote com que me cruzo diariamente uma caixinha de bombons. Ainda bem que vou a pé e conversamos e isso. Mas sem a Violeta não é a mesma coisa. Ele é um querido, encontra sempre qualquer assunto para ficarmos uns minutos à conversa.
    Gosto dos seus contos. Verdade. E nem têm que ser de natal.
    Um abracinho

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  4. Oh, Bea, como fiquei feliz com as suas palavras. Obrigada. Imagino essas conversas. De certeza boas e empáticas. Que bom. Ele deve ficar feliz.
    Outro abracinho, amiga Bea, e Bom Ano Novo

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  5. São conversas de beira de estrada, pretextos ligeiros, duram uns minutos no cedo das manhãs. Nada de transcendente. Mas servem aos dois.

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