sábado, 6 de novembro de 2021

A abóbora em poesia - ninguém diria!

 

 Num comentário - obrigada, Bea - foi referida a abóbora porqueira.  Talvez pelos sons semelhantes, logo me lembrei da 'abóbora carneira' que aparece no poema de Cesário Verde, 'Num bairro moderno'. Como é bastante longo, mas vale a pena lê-lo todo, partilho só um excerto.

No poema, surge uma vendedora de fruta numa rua da grande cidade. Sobressai a atenção aos pormenores e sensações do real, não faltando o olhar social e humano face à dureza de alguns trabalhos. E outras coisas, é claro, porque a cada leitor a sua leitura.

 

Vi há pouco o comentário do Vítor Oliveira com a partilha de um post da sua Carruagem 23. Obrigada, Vítor. Vejam, se puderem. Vale a pena. Está em: 

https://carruagem23.blogspot.com/2011/02/cesario-verde-tanta-poesia-para-tao.html

Nota: Janita, assim poderá ver e ouvir o poema na íntegra.

Um domingo com boas sensações para todos.

 

'Num bairro moderno'

'(...) 

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
"Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!..."

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

"Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!"
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário - que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.'

Cesário Verde, in O Livro de Cesário Verde

 

Cesário Verde  nasceu em Lisboa em 25 de fevereiro de 1855. Morreu na mesma cidade em 19 de julho de 1886, apenas com 31 anos.

Foi um dos primeiros poetas portugueses do realismo. A sua obra - curta mas muito importante - está compilada em O livro de Cesário Verde.

19 comentários:

  1. Cesário Verde um poeta ilustre. Um poeta de eleição. Faleceu jovem de mais.
    .
    Bom fim de semana.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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    1. Demasiado cedo, de facto. Ainda assim, deixou uma obra que marca a Poesia Portuguesa.
      Bom domingo, Ricardo

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  2. Parabéns pela partilha das imagens Bem como, do poderoso poema!! :)
    *
    Os dias podem ter cor!
    *
    Beijo, e um excelente fim de semana.

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    1. Obrigada, Cidália,também pelas suas partilhas.
      Beijinho e um domingo feliz.

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  3. Olá, Maria Dolores!
    Também possuo essa preciosidade d'O Livro de Cesário Verde. O único publicado. Há muitos, muitos anos, tantos que as suas folhas já amareleceram.
    A Dolores começou a história a partir da décima terceira quintilha, mas uma outra anterior de que também gosto muito. Precisamente a anterior à do sol que dourava o céu:

    "E, como um feto, enfim, que se dilate,
    Vi nos legumes carnes tentadoras,
    Sangue na ginja vívida, escarlate,
    Bons corações pulsando no tomate
    E dedos hirtos, rubros, nas cenouras."

    Ao longo da minha vida blogueira muitos foram os poemas que transcrevi deste Livro, numa edição bem antiga das Publicações Europa América.
    Foi com grato prazer que li aqui um dos seus belos poemas, onde o recurso expressivo está bem patente.

    Também "O Sentimento Dum Ocidental" que Cesário Verde dedica a Guerra Junqueiro, é um 'tratado' de beleza poética narrativa de uma época.
    Adorei vir até cá!

    Um abraço e obrigada por estas belas lembranças.

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    1. Que bom e que boas palavras, amiga Janita.
      Já ganhei o dia. Sim, também gosto muito da transformação do real que surge neste poema, quando os frutos do gigo se transfiguram em partes do corpo humano.
      Felizmente C.V. teve um amigo que compilou os seus poemas para desfrutarmos ao longo do tempo desta poesia tão atenta ao real.
      Obrigada, Janita, um abracinho e um domingo com bons e poéticos momentos.

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  4. Ora bolas, já perdi mais um comentário. Pronto, digo só que a abóbora carneira é capaz de ser outro nome para a mesma natureza. E de Cesário que a sua poesia é única.

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    1. Bea, nada se perde, tudo se transforma!!!
      Pois, não sei a diferença, mas gostava de saber. Talvez o dr Google saiba.
      Pelo que conheço, concordo consigo sobre a originalidade de C.V. Gosto muito da captação do real, tornando-o poético.
      Ah, e foi um 'influencer', mesmo sem frequentar os grandes salões da época!!!
      Bea, um domingo de outono com sol risonho.

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  5. Para ouvir!
    A voz da vendedeira é nossa familiar!
    https://carruagem23.blogspot.com/2011/02/cesario-verde-tanta-poesia-para-tao.html
    Bom domingo.

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  6. Obrgaaaada, Vítor, pela sugestão e pela tua partilha que acrescenta mais informação e dá mais vida ao meu post.
    E lá está a tua voz de diseur e a M. José na figura da vendedeira. Maravilha.
    Um abraço e um domingo com felizes maresias.

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    1. Muito obrigado.
      Caso para dizer "Estas vozes não são estranhas!"
      Beijinho.

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  7. Maria Dolores.
    Obrigada pela sugestão, mas já lá estive há um bom bocado.
    Até comentei. Como o autor do blog tem moderação nos ditos, ainda não deve tê-lo publicado.
    Acrescento que o que me moveu não foi o poema em si pois como pode constatar AQUI , tenho o livro.

    Se a Dolores clicar no nome do escritor, nas Etiquetas, terá acesso a tudo ou quase tudo o que deste "Poeta dos Poetas" já publiquei.

    A minha curiosidade foi ouvir a dicção do declamador e da "vendedeira" de fruta, desta Carruagem 23 :) e ver as imagens. Gostei muito, muito mesmo. Posso dizer que fiquei fã.
    Grata a ambos pela bela partilha.
    Tudo o que esteja ligado à Poesia...aí vou eu!

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    1. Bom dia, Janita.
      Ainda não fui à Carruagem 23. Oxalá o Vítor já tenha visto. Vai ficar contente, de certeza.
      Não conhecia esta capa do livro nem o poema. Muito bonita. O meu também é antigo e a capa é cinzenta. O poema também é muito bonito. E o amor a alguém sabe sempre bem, ainda que C.V. não o tenha tratado muito, acho eu.
      Ainda não me dediquei a pôr etiquetas no meu blogue. Realmente assim é mais fácil aceder aos temas.
      Um abracinho, boa semana e obrigada pela bela partilha.

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    2. Já vi e já respondi. É o mínimo, perante palavras tão simpáticas. Muito obrigado a ambas.
      Abracinhos.

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  8. O poeta que sabia olhar de frente para as pessoas-povo! A ler de vez em quando, sempre se aprende algo...

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    1. Talvez por ter assim um olhar tão apurado, conseguia 'ver' o que outros poetas - mais académicos - ainda não tinham visto.
      Boa semana, Justine.

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  9. Há tanto tempo que não lia Cesário Verde e gosto! Boa semana!!!

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  10. Que bom, Gracinha, então. Fico contente. Boa semana também. Obrigada.

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