Amadeo Souza-Cardoso |
A velha casa tem três relógios. Todos adiantados mas a dar horas em minutos diferentes. Um soa as badaladas quando faltam uns quinze minutos para a hora certa; outro, uns vinte e tal minutos e outro ainda, exatamente, meia hora mais cinco minutos.
Este último é o que conta para as horas das refeições que são sempre a horas certas, ou melhor, certas pelo relógio adiantado meia hora mais cinco minutos. Os cinco minutos são para qualquer distração, para alguém que bate à porta, para atender o telefone, para responder à chamada da vizinha, para fechar uma janela se o vento sopra ou a chuva não para de cair... Os trinta minutos são um dos hábitos intocáveis da casa.
Se é estranho durante o dia ouvir badaladas de três relógios, muito mais estranhas são as noites dormidas na casa. Isto é, mal dormidas.
E, como se os sons da noite estivessem incompletos, há o estalar de uma velha parede, o ruído da água a querer passar num cano ferrugento, o ronronar do gato, os ais doridos e não contidos...
Estranha é a noite. Para mais, quando não se sabe as horas ao certo.
Talvez fixar os toques dos diferentes relógios ajude a adormecer.
Ou tenha ficado alguma janela aberta para poder olhar a paisagem noturna. E como se ouvem muitas badaladas dispersas na noite, ninguém acorda.
Ou continue sem adormecer. Como as badaladas dos três relógios.
Que texto tão bonito!...
ResponderEliminarLembra-me um bocadinho Campos! Principalmente este segmento: "E, como se os sons da noite estivessem incompletos, há o estalar de uma velha parede, o ruído da água a querer passar num cano ferrugento, o ronronar do gato, os ais doridos e não contidos...
Estranha é a noite. Para mais, quando não se sabe as horas ao certo.".
Vale sempre a pena aqui vir, apesar de o meu único relógio também andar por vezes, bastante desatinado.
beijinho,
IA
Obrigada, amiga. Que bom teres gostado e não ter sido em vão a tua vinda aqui.
ResponderEliminarSão coisas que me surgem de repente e que têm a ver com experiências que a vida nos vai apresentando em muitos dias e em muitas noites!
Abraço
M.
Também gostei muito deste texto. Soa bem, as palavras batem certo com as horas, mesmo que os relógios não batam certo.
ResponderEliminarPura poesia!
bjs
Ci
Que bom, Ci, também teres gostado! Obrigada!
ResponderEliminarEmbora com adaptações, não me é estranha esta realidade. Vem um momento em que bate umas badaladas em forma de palavras.
Abraço
M.