Matisse |
Era
quase Natal. Dezembro ia chuvoso e frio. O vento empurrava folhas avermelhadas
por ruas húmidas da cidade. Na montanha, não muito distante, os dias passavam
brancos e gelados.
A Rua do Refúgio – designação que se devia a um antigo
canil – estava deserta e os portões de ferro permaneciam fechados. O silêncio
era tanto que, mal passava um gato, logo se ouvia e o latir de um cão lembrava
um terramoto.
As camélias saltavam dos muros, como luzinhas coloridas
em árvores de Natal.
Num dos jardins, vivia um ouriço-cacheiro. Arrastando-se,
pachorrento, pisava as folhas que faziam crac-crac. O bicho tinha liberdade,
tempo e espaço para passear nas árvores ou no terreno musgoso. Os picos, que
faziam parte da sua natureza, alisavam os percursos.
Diana, uma menina de olhos meigos e azuis, morava nessa
rua. Andava pensativa e triste, porque os pais pouco falavam e não a deixavam
brincar fora de casa. Nem sequer no jardim. Corria perigos - diziam. Diana
olhava-os boquiaberta.
Punha-se, então, a ler, a estudar, a jogar computador, a
ver televisão… Também enviava sms. Muitos.
Um dia, Diana descobriu que era bom olhar vagarosamente
pela janela do quarto, donde podia observar os montes; os quintais; os jardins;
a chuva a cair; os gatos enroscados ao sol, ou a correr ou a trepar aos muros;
o vento a bater na portada solta; um esquilo fugitivo; uma mulher passando
apressada; um homem velho manquejando; um par de namorados em contínuos e
desejados abraços...
Começou a desenhar e a escrever pequenos textos.
Era quase Natal e as casas da rua do Refúgio pareciam
brinquedos gigantes sem ninguém dentro para brincar. Apenas silêncio, plantas e
bichos. Descobria a rua despida como troncos de magnólias no Inverno e
recordava o nome de flores, árvores e arbustos que o avô lhe ensinara, quando
era mais pequena.
Diana olhava as montanhas ao longe que pareciam espelhos
com claros reflexos. A menina contemplava-as e lembrava-se dos distantes e solitários
abetos rendilhados por flocos de neve; do frio seco no rosto de quem passava;
da casinha pequena, com uma lareira e uma janela e uma mesa tão boa para ler ou
escrever histórias vividas ou imaginadas; o cão Dunas, afável e fiel; pessoas
que olhavam os outros com tempo e atenção…
Apetecia-lhe ir até lá, mas as amigas estavam de férias
com os avós; o pai, quando falava, repetia que tinha muito trabalho e pouco
tempo; a mãe, quando respondia, queixava-se de cansaço e solidão.
Numa tarde de sábado, Diana foi com a mãe ao Centro
Comercial das Buganvílias. De mãos dadas, caminhando sorridentes, a menina
reparou que a mãe era muito bonita. Quando escrevesse uma história, ela seria
uma fada.
Junto às lojas, a mãe e as amigas começaram logo a falar,
ruidosamente, dos presentes, das compras já feitas, das promoções na loja dos
perfumes, dos novos modelos de botas, dos vestidos brilhantes para o Ano Novo…
Regressando à rua do Refúgio, Diana e a mãe repararam que
o portão de casa estava aberto. Nunca o tinha visto assim escancarado.
Entraram em casa devagar, olhando para todos os lados,
com algum receio.
Teria alguém entrado em casa na sua ausência? E o pai,
onde estaria? Procuraram um bilhete, uma mensagem de telemóvel… E nada nem
ninguém encontraram. Diana correu até à janela. A rua, como quase sempre,
estava deserta. Na casa em frente, o esquilo trepava lesto no cedro alto e
largo. Perto, serpenteava, por entre as folhas moídas, o roliço
ouriço-cacheiro.
Foi quando o telemóvel tocou. Era o pai.
- Pai, onde estás? Onde foste? Por que deixaste o portão
aberto? E não és tu que me recomendas sempre muito cuidado?
O pai, do outro lado, recomendou-lhe que falasse devagar
e fizesse uma pergunta de cada vez.
Diana assim fez. E o pai respondeu-lhe que tinha ido à
casinha da montanha porque precisava de estar só. (O pai sempre dizia que
morava na rua do Refúgio, mas o refúgio só o encontrava na montanha).
A necessidade era tanta de se evadir que se tinha
esquecido de fechar o portão. Andava há muito com uma história a bailar-lhe na
cabeça. Queria escrevê-la e partiu. Não andava com paciência.
- Diana, a história que escrevi é a tua prenda de Natal.
Venham cá ter amanhã. Podemos lê-la à lareira. A mãe prefere ficar aí?
Diana não sabia bem o que fazer. Mais uma vez estava
dividida entre pais divididos. Sentindo um turbilhão, Diana insistiu com a mãe
para irem ter com o pai à casinha da montanha. A mãe respondeu que não. Diana
disse, então, que ia telefonar à tia Luísa. Era com ela que desabafava quando
os momentos eram pesados e tinha de procurar algum alívio. Era também o seu
refúgio. Pedir-lhe-ia que a levasse. A mãe concordou.
Para além de ter curiosidade em ouvir a história do pai,
queria saber também a sua opinião sobre o que ela própria tinha escrito e
desenhado. Levaria o caderninho com os desenhos de plantas e bichos que
observava da janela. Quando chegassem, queria que a mãe ouvisse as histórias –
a do pai e a sua.
Quando Diana regressou com o pai, na véspera de Natal, a
mãe tinha saído. Para não voltar – dizia ela num bilhete, deixado na mesinha da
entrada.
A menina olhou o pai e começou a chorar.
Nos dias seguintes, passava ainda mais tempo perto da
janela, sem ver as plantas e os bichos que sempre lhe haviam prendido a atenção.
Queria ver a sua fada voltar.
Escrevi as primeiras
cinco dezenas de linhas, em 2010,
num ateliê de escrita, em
Serralves.
O objetivo era escrever uma
história de Natal.
Cada participante teria de
continuar o texto
que havia sido escrito pelo
colega anterior.
Nunca cheguei a ver a estória
completa. E tenho pena.
Hoje dei um final à parte que
eu havia iniciado.
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