quinta-feira, 28 de julho de 2011
Cores de um dia
Uma hora da tarde: quente, ensolarada e muito conversada travessia da praça Velasquez. A terra seca do chão pega-se à cor das sandálias que vão deixando pequeninas marcas.
Almoço ao ar livre. Perto de árvores e relva. Mesmo quente, a hora parecia mais fresca. Ou era da água fria que acompanhava o bacalhau à Brás - por acaso, servido pouco quente?
Principio da tarde: consultório médico. Ar condicionado. Forte. Quadros coloridos na parede. Alguns vindos de África. Corpos expostos à verdade do espaço e do tempo. Com roupas a realçar-lhes a pele e a cor. Uma escultura de pedra: um bebé nascendo do corpo da mãe. Fonte de vida.
Não se vêem, mas estão lá também os medos que advêm de consultas anuais. A vida expandida nas obras de arte apazigua a espera. Lá dentro, o médico comunica calma e amigavelmente. Como se fosse a primeira paciente do dia. Como se a última consulta tivesse sido ontem. Felizmente há pessoas-médicos assim.
Tarde: Sede. Muita sede. A água a cair no copo. Incolor e desejada. Ai que prazer ter sede e ter água para beber!
Fim da tarde: continuação da correção de provas. Tentarei olhar pela janela ao pôr do sol.
Noite: Se puder, antes da sua chegada, vou regar o jardim para que as cores do dia de amanhã sejam como as de hoje. Ou ainda mais nítidas, se for possível.
quarta-feira, 27 de julho de 2011
A ameixoeira que não gostava de estar só
Há uns tempos, fui a casa de uma amiga. Dando uma volta pelo jardim e quintal, contou a história de uma ameixoeira renascida. Achei piada e escrevi uma pequena estória. Esta semana, fui a casa de outra amiga e estacionei o carro debaixo de uma ameixoeira. Lembrei-me, então, desta pequena narrativa que agora partilho. Para além disso, é tempo das ameixas e as buganvílias estão aí a celebrar as cores do verão.
A ameixoeira que não gostava de estar só
Era uma vez uma ameixoeira que morava num quintal muito acolhedor. A vizinhança era muito variada: duas macieiras, três pés de abóbora, um limoeiro, margaridas, camélias, azáleas, arruda, erva-cidreira, manjericão, lúcia-lima, hipericão…
A ameixoeira dava frutos muito vermelhinhos. Ameixas escurinhas e aveludadas. Sumarentas e perfumadas. Os donos da casa, tanto as crianças como os adultos, gostavam de as colher e saborear mesmo junto à árvore que era como se fosse a casa onde as ameixas moravam. Claro que estavam expostas ao vento, à chuva, ao sol, mas era assim que, naturalmente, desejavam viver. Só não gostavam era de cair ao chão já podres ou secas, porque podiam ser pisadas sem ninguém as apreciar nem saborear.
Mas quando caíam, ainda tinham a serventia de estrumar a terra, ajudando a que, no ano seguinte, novos frutos e plantas se desenvolvessem.
Um dia, as folhas da ameixoeira começaram a secar. De princípio, era uma aqui, outra ali, mas, em pouco tempo, ficaram todas murchas, escuras e sem viço. Bastava uma pequena brisa para as fazer cair ao chão. Qualquer aragem as desprendia da árvore e atirava-as para a terra.
No ano seguinte, de certeza que a ameixoeira não daria frutos. Era como se uma grave doença lhe roubasse a vida, tirando-lhe, aos poucos, a seiva e a força.
Ora, junto da ameixoeira, vivia uma buganvília de cor bem vermelha. No centro de cada flor, raiavam estames amarelinhos, parecendo alegres e mágicas luzes acesas.
Separava-as apenas um ou dois metros - a ameixoeira que secava e a buganvília que crescia viçosa.
Como se sabe, as buganvílias estendem os seus ramos apoiando-se nos suportes que estão próximos e que as ajudam a trepar. Assim aconteceu.
Os ramos pareciam braços a estender-se em várias direcções. Não como as pernas do polvo que se agarram ao solo com escondido disfarce para não ser notada a sua presença.
Os ramos da buganvília crescem sempre com a mesma cor e aos olhos de toda a gente, embelezando os recantos onde vivem.
Às vezes são um bocadinho intrometidas porque espreitam às janelas, saltam os muros, entram pelas portas… São como pessoas muito bonitas, que dão alegria e beleza aos lugares, mas como também são uma força da natureza, precisam que alguém lhes oriente o rumo.
Era assim o quintal onde a nossa buganvília crescia em todas as direcções. Um dos ramos foi ter precisamente à velha ameixoeira que parecia desfalecer de tão sequinha e fraquinha.
Um ramo da buganvília foi ao encontro da árvore raquítica e outro braço – digamos assim – encostou-se ao tronco, apoiando-o.
Com o tempo, os ramos deram origem a outros ramos e pareciam gostar daquele amparo que encontravam na velhinha ameixoeira que, em silêncio e quase escondidinha, ia recebendo renovada energia.
Apesar de parecerem abraçá-la, os ramos da buganvília nunca a taparam, para que ela pudesse sempre respirar à vontade. Na verdade, a buganvília abraçava os vizinhos ramos, mas deixava sempre espaço para a ameixoeira, se pudesse ou quisesse, poder espraiar-se à sua volta.
O tempo foi correndo e quem passava por lá perto só tinha olhos para a buganvília, porque a ameixoeira, quase escondida, parecia uma bengala fininha em que a formosa trepadeira se apoiava mostrando toda a sua beleza e vigor.
Um dia, a dona da casa foi ao quintal apanhar couves para a sopa e passou perto das duas árvores. Se estivesse com pressa ou a pensar em mil coisas ao mesmo tempo, nem repararia no que lhe saltou logo aos olhos. A ameixoeira, que parecia até aí estar a desaparecer, tinha novas folhinhas verdes a crescer. Como se renascesse de um longo inverno.
A senhora olhou várias vezes com atenção, afastou uns raminhos da buganvília com a mão para verificar se não eram as folhas da trepadeira que a tinham invadido, mesmo sem querer. As folhinhas renascidas eram mesmo da ameixoeira. Pelo aspecto, por certo a árvore até daria fruto no próximo ano. Via-se também pelo tronco que estava mais liso, mais verde e mais forte.
Foi então que a dona da casa, para quem cada planta tinha uma história como têm as pessoas, logo chamou a família para ver a ameixoeira renascida.
E o neto, um menino de cabelo forte aos caracóis, olhou para a avó e disse:
- Ó vovó, se calhar a ameixoeira não gostava de estar sempre sozinha!
A avó sorriu-lhe, concordando com ele e já imaginava a compota vermelhinha de ameixas que faria no ano seguinte.
De uma coisa não podia esquecer: pôr na mesa um raminho de buganvília ao lado da compota reluzente e saborosa.
IDADE
Dias antes de fazer anos, disse que não queria festejar. A família insistiu. Ele persistiu. Na véspera do aniversário, uma filha perguntou-lhe, com atenta indiferença, a que horas poderia ser o jantar de anos com a família reunida. Ele encolheu os ombros, rendido. Mesmo sem o dizer, estava contente com a firmeza do convite.
Fazia oitenta e cinco anos e tinha ainda muitos projetos: uns partilhados, outros mais ou menos plantados entre os seus botões.
No jantar de aniversário, conversou, recordou, também riu, e comeu a sopa de peixe de que tanto gostava. O vinho estava fresco e a noite bastante quente. No pátio, onde decorria o jantar, fechou os olhos.
- Olha, o avô está a dormir.
- Não, não estou a dormir. Estava a ouvir-vos e a pensar que esteja onde estiver, sou sempre o mais velho. Raio!
- Deixe lá, pai, também me vai acontecendo o mesmo. É a vida.
Pois é a vida. Tão curta e, vista pelos mais novos, até parece longa. A infância ainda morava ali: crua, dura, mas lisa e leve. Um tempo em que os meninos para se fazerem homens não tinham tempo de ser meninos. O trabalho começado tão cedo. Em idade e no dia. Mais tarde, muito mais tarde, a alegria das idas à Feira do Livro no Porto. A paixão pelos livros de Camilo. Grande homem. Para quem a vida era vivê-la.
Os pratos ainda estão sobre a mesa. Todos falam, riem… As bisnetas correm “entre os vasos de flores”. Como se tudo fosse feliz e eterno. O velho cão chega a arfar em busca de companhia e logo a seguir de sossego.
É dia de aniversário. Cantam-se os parabéns. Foi a bisneta mais nova que deu o tom. Ela chegara com um desenho e uma frase bonita para o avô. A folhinha colorida ficou, durante a noite, caída no chão. Aberta à luz redonda da lua. Persistente e sem idade.
sexta-feira, 22 de julho de 2011
“O sonho comanda a vida”?
O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te portuguez..
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Fernando Pessoa - Mensagem
Este poema, sobretudo o primeiro verso, com a sua carga simbólica, poderá ter sido referido no texto produzido sobre “o papel do sonho na vida do ser humano…”, no exame de Português, 12º ano, realizado hoje, dia 22 de Julho. Em muitos casos, porém, foi esquecido.
O tema do sonho foi, com certeza, muito abordado nas salas de aula a propósito da Mensagem, do Memorial do Convento… Interrogo-me por que razão, perante uma folha em branco, a muitos alunos não ocorre argumentar recorrendo a textos estudados.
Será que a literatura, apesar do esforço de muitos professores, não passa de um sonho que depressa se esquece?
Ou, o que ainda é pior, vai-se desvanecendo a necessidade do sonho na construção de uma obra ou de uma vida?
Se assim for, “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”
“Unidos pela harmonia das palavras"
Em resposta a um pedido, esta foi uma frase sugerida por uma colega e amiga para inscrever e oferecer aos professores do mesmo Departamento.
Também a recebi. Achei-a bonita, simples e clara. Sobretudo para quem trabalha a palavra como se cuida da terra que se quer mais fértil.
Gosto da ideia de as palavras serem geradoras de algo que contribui para que as pessoas se sintam bem, aproveitando o que está ao seu alcance e vale a pena.
Sem sol, sem chuva, sem ar não sobreviveríamos, mas sem palavras, essas dádivas seriam menos sentidas e vividas.
A experiência ensina que as palavras são polivalentes. Às vezes estimulam, outras tantas ferem. Porém, completam a “harmonia” e a união, sem as quais a vida seria amarga e fria, mesmo sendo efémera.
Gosto de palavras. De preferência simples e concretas. Que traduzam verdades humanas e cores da natureza. Disponíveis e plenas. Pacientes e livres. Discretas e presentes.
Releio a frase partilhada e ocorre-me o poema de Eugénio de Andrade que a seguir transcrevo. Não digamos nunca que as palavras dos poetas são palavras vãs.
AS PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Valter Hugo Mãe
Valter Hugo Mãe: “Agarrei-me à prosa como a algo de salvação”.
Acabo de ver uma entrevista, na televisão, com Valter Hugo Mãe.
Há uns dois ou três anos, frequentei uma Comunidade de leitores na Biblioteca Municipal de Gondomar sobre novos autores da Literatura portuguesa.
O coordenador era este jovem escritor. Tocou-me a sabedoria, a palavra certa, a atenção com que ouvia as pessoas e a repercussão de tantos ecos do mundo. Parecia um menino grande à escuta e, quando falava, um sábio organizador de ideias. Não abstratas nem afastadas do homem comum, mas concretas, vivas e necessárias.
Nessa altura, foi realizado um Encontro de Linguística no concelho de Gondomar. Pedi-lhe que fizesse uma comunicação. Respondeu que sim com simpatia e naturalidade. Antes da sessão, mostrei-lhe um poema de um aluno. Disse que era superior a muitos que recebia.
Hoje, ao ouvi-lo, registei algumas das suas frases. Disse muitas mais com interesse, porque usa as palavras dando-lhes humanos sentidos. O seu modo de falar ativamente tranquilo ajuda a compreender uma das frases ditas:
“Não me interessa morrer cedo ou tarde, o que quero é morrer completo”.