sábado, 6 de julho de 2024

O prazer fica sempre aquém do desejado, disse ele, já sozinho à mesa

 

O dr Esticadinho, a olhar para a nódoa da camisa, até se esqueceu de que a Maribel o tinha deixado sozinho à mesa. Já a conhecia há uns anos e sabia desse seu  hábito que o irritava e a outros clientes. Ou melhor, amigos do peito, como elas diziam. Quando ela ouvia uma conversa mais divertida entre as colegas, levantava-se logo da cadeira, se o momento não era de sedução,  e lá ia ela saber o que se passava.

No momento, a Lurdes ria-se com aquele seu riso meio fechado e arrastado. Quem não a conhecia ficava na dúvida se era riso ou se era choro.

O que estaria a contar Lurdes? Interrogou-se ele, com a cabeça ora mais esticada, ora mais baixa, fixando e maldizendo a nódoa.

Daí a nada, saiu da mesa e juntou-se ao grupo à volta de Lurdes. Era da maneira que não pensava na malfadada nódoa da camisa. Sempre impecável e aquela nódoa a manchar-lhe a indumentária e a reputação! Raisparta.

E como o bife com as batatas fritas e o ovo a cavalo lhe tinham sabido bem! Um festim. Boa fritura, bom tempero. Este manjar não lhe saía da cabeça há muito tempo. Hoje, finalmente, tinha-lhe escorregado, deliciando tudo até ao estômago. E tinha que vir aquela nódoa tirar-lhe o prazer do momento. Vinha à Casa do Sol para ser feliz e ter prazer e, afinal, até neste ninho de ternura descobria que o prazer fica sempre aquém do desejado!

Levantou-se devagar, arrastou a cadeira consigo e sentou-se bem perto do grupo. E Lurdes foi contando:

- Como a minha avó era muito religiosa, quando eu era adolescente, inscreveu-me uns anos seguidos num campo de férias, orientado por freiras. Havia uma que não tinha paciência para nada e um dia deu um estalo numa miúda do nosso grupo. Ficámos furiosas. Tínhamos de fazer alguma coisa para vingarmos o que se tinha passado.

- E o que fizeram?

- Esperem um bocadinho senão perde a graça.

E continuou:

- Como sempre, ao fim de tarde, fomos com essa freira escrever pensamentos, num caderninho próprio. De repente,  reparámos que, junto de nós, havia  pulgas da areia, sempre a saltar. Mesmo sem nos levantarmos, apanhámos muitas para um saco de papel e, sem a freira reparar, despejámo-lo no saco preto de asas que a freira tinha deixado atrás de si. Quando nos preparávamos para ir embora, ao pegar no saco, a freira deu conta das pulgas que lhe tinham invadido o saco. ‘Ai, meu Deus’ - repetia ela vezes sem conta e aos gritinhos.

- E depois, e depois?

- Quando nos viu todas a rir, mandou-nos rezar o terço, e só nos pudemos levantar depois de terminada a salvé-rainha, apesar de a areia ter ficado gelada.

O dr Esticadinho ouviu a história, sorriu e disse de forma lenta:

- Até nisto o prazer fica aquém do esperado! São horas de eu ir andando. Um vizinho meu, que por acaso também é muito religioso, disse-me que precisava de falar comigo ainda  hoje.  O que é que o Nequita me quererá dizer?


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