a - Apesar de haver vários supermercados nas redondezas, prefiro um que tem apenas o que é essencial mas, para lá chegar, os passeios são largos e planos. Como antes de sair tinha avançado na leitura de Claraboia de José Saramago, pelo caminho, dei comigo a recordar as últimas páginas sobre Abel, personagem da obra. Aquele, agora com 28 anos, vai vivendo só e precariamente, por decisão que tomou aos 16 anos. Desta vez, alugou um quarto na casa de um sapateiro e à noite os dois homens têm longas conversas sobre a vida e os sentidos que nela encontram e muitas vezes não.
Ora, na parte do livro em que vou, Abel interroga-se,
para além de muitas coisas, sobre a utilidade da sua vida, uma vez que o
sapateiro, ex-ativista social, a considerava inútil. Disse-lho por não querer iludi-lo, embora os
seus projetos de transformação da sociedade tivessem cessado há largos anos.
De facto, sendo um livro de 1953, portanto o autor andava pelos 30 anos quando o escreveu, revela preocupações sociais sobretudo do mundo do trabalho, que vão sendo pressentidas pelo próprio leitor.
Só que, muitas vezes - como aconteceu ao velho
sapateiro - muitos ativistas vão sentindo que esses projetos se desfazem e, pelas mais variadas razões,
optam por caminhar por vias mais fáceis e planas. Como os passeios que
prefiro seguir, naturalmente, para ir ao supermercado. Embora não seja ativista de nada, admiro quem o é e assim vai mudando setores da sociedade, ainda que a visibilidade do trabalho nem sempre seja imediata e visível.
b - Gosto das manhãs tranquilas aqui em casa, em Londres. A mais pequena vai para a escola na sua saiinha cinzenta e blusa branca ou, nos dias mais quentes, no seu vestidinho de xadrês verde e miudinho. Os grandes vão trabalhar ou ficam de vez em quando em casa em teletrabalho. Levantam-se do computador para virem à cozinha buscar café e retomam o trabalho.
Como o apartamento não é grande, é fácil a organização da manhã e deixa-me tempo para ler e escrever mais uma destas páginas no bloco de notas do telemóvel. Ou fazer um pouco mais de qualquer trabalhinho com linha ou lã que a Clarinha me pede para adiantar e que olha com agrado sorridente quando regressa.
Mas, ontem à tarde, percorri uma boa parte de Kilburn Road, rua de muita gente vinda de diferentes continentes e de múltiplas lojas com nomes asiáticos onde há de tudo, como se imagina logo à entrada por tudo o que ocupa uma boa parte do passeio.
Comprei uvas numa loja turca com fruta bem exposta e
arrumada, de aspeto fresco e tentador. O aspeto condizia com o interior.
Nessa rua - antiga via romana - há um parque, onde as flores crescem viçosas e os meninos se divertem nos escorregas e outras brincadeiras, como a minha neta e coleguinhas de escola.
Na parte mais florida do parque, contornando um pequeno lago, um homem velho lia um livro. Parecia em sossegada velhice. Ao lado, no campo de ténis, onde qualquer pessoa pode jogar, estava o habitual treinador a quem, pelos vistos, as pessoas pedem ajuda frequente. É simpático, falador e passa o dia a ajudar ou a ensinar a jogar ténis, o que parece ser o principal sentido dos seus dias. Ou a maneira que encontrou de dar sentido aos seus dias.
Estão a parecer-me uns dias proveitosos, esses de Londres.
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