terça-feira, 25 de maio de 2021

Uma nova hera

A casa sempre havia sido uma paixão. Nela tinha nascido e vivido. Era de granito firme e  sossegado, tinha um frondoso jardim e um quintal que não era grande mas enorme em fertilidade. E o rio corria sempre ao alcance da sua vista.

Os pais, em tempos, quiseram casá-lo com uma rapariga que eles conheciam desde menina. E, apesar de já não ser nada menina, toda a gente a tratava desse modo. A menina isto, a menina aquilo. E a voz e o jeito de sorrir dela era mesmo de menina.

Para fazer a vontade aos pais e por estar em idade muito mais do que casadoira, ele começou a fazer-lhe a corte. Ela sorria-lhe, mas quando ele lhe queria fazer uns mimos diferentes daqueles a que ela estava habituada, adeus ou até logo. Tinha uma novena, tinha de preparar o retiro, tinha de ir à missa, era a hora do terço, tinha de preparar uma leitura ou um  peditório, etc.

Ele começou a cansar-se de não lhe poder dar os mimos desejados nem dela receber os mimos esperados. E os mimos acabaram, mesmo sem terem começado. Era da maneira que podia passar os domingos como queria: ir correr pelos montes ou pelos passadiços junto ao mar. 

Quando os pais morreram, ele ficou a morar sozinho na casa. Como já estava reformado, todos os dias tinha flores para plantar, ervas para arrancar, relva para cortar, ramos para podar, etc. A casa estava sempre num brinco e, para a aprimorar ainda mais, mandou fazer um grande azulejo com a sua fotografia, de todas a melhor e mais bonita. Achava um primor vê-la na parede com mais sol.

Um dia, nesses passeios de domingo, que manteve porque a vida tinha de continuar, conheceu um amor, um grande amor, o seu maior amor. Era como se já se conhecessem desde o tempo em que o amor é amor. E o cupido acertou de tal maneira que foi ficando na casa de seu amor para do amor estar mais próximo. Fica só hoje. Só mais esta noite. Amanhã é domingo e podemos correr juntos, etc etc etc. E os dias foram passando, as semanas e até os meses.

Mas a lembrança da casa que fora o seu berço não o abandonava. Como estará tudo? Deve estar uma selva. Parece que a casa é mais importante do que eu - dizia o seu amor. Claro que não - respondia com amor. E tinha pena de o seu amor não conhecer a casa. Muitas vezes o seu amor prometera ir ver a casa, mas, chegando o dia, sugeria nova corrida ou um petisco como ele nunca provara. Ainda bem que o seu amor, quando se dispunha a falar dela, o aconselhava a nunca vender a casa.

Um dia, mesmo sem querer contrariar o seu amor, trocou-lhe as voltas e, sem nada lhe dizer, foi em corrida até à sua casa. Já não podia mais. Tinha de ver como estava. Quando chegou, nem queria acreditar, as ervas daninhas cresciam por toda a parte e em plena liberdade. E que desgosto ver uma hera que havia trepado pela parede e já lhe cobria parte do retrato. Nem teve coragem de entrar. Pôs-se a caminho da casa do seu amor. Ia desnorteado, meio zonzo e nem ouviu a buzina do carro que o atropelou. Morreu poucas horas depois.

Na mesma semana, o amor, que fora o seu amor, veio conhecer a casa. E foi amor à primeira vista. Tinha era de cortar a erva. E plantar uma nova hera para cobrir todo o retrato. Sempre ficava mais barato do que mandar tirá-lo da parede.

 

9 comentários:

  1. Afinal, o amor também pode matar...e pelos mais variados motivos.
    Um pouco macabra esta história, porém bastante interessante. Prende a atenção do leitor. Eu gostei.

    Um beijinho.

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  2. Olá, Janita. A história saiu-me hoje de repente. Pus alguns grãos de pimenta numa situação que ouvi contar e que adaptei, é claro.
    Um abraço, Janita, e uma noite bem descansada.

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  3. Concordo com a Janita! Gostei de ler!:)

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    Beijo e uma excelente noite

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  4. Obrigada, Cidália. Uma boa noite descansada.
    Um beijinho

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  5. Que tipo de pessoa coloca o próprio retrato em azulejo numa parede exterior da casa onde vive. O homem não casa e só depois, já na reforma, encontra um amor que faz esquecer tudo, até a casa dos seus encantos. Por outro lado, o desfecho inesperado resolve todos os imbróglios. A gente fica, então, sabendo de estranhos amores.
    Mas a história está muito bem contada, Maria. É como se estejamos a ouvi-la contar. E creio que o inverosímil contribui e ainda mais a afirma como história.
    Boa noite.

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  6. Obrigada, Bea. Não gosto muito de histórias macabras, mas ontem, confesso, quase me diverti a escrevê-la, porque gosto de jogos de palavras. Surgiu-me o final e o resto veio por acréscimo. Mas o retrato na casa não foi invenção minha!!!
    Um dia com histórias felizes, Bea.

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  7. Uma história interessante e muito bem contada.
    Gostei de ler.
    Continuação de boa semana, amiga Maria Dolores.
    Beijo.

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  8. Obrigada, Jaime. A história mistura ficção e realidade. Como a maior parte das histórias, aliás.
    Que a semana esteja a correr bem e que assim continue.

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  9. Interessante. São os desencontros da vida!

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