quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Que esta escrita nunca se acabe!

 Belíssimo texto. Para além do bom humor, é uma lição de escrita criativa.

Obrigada, Idalina, por mais esta partilha.

“Recordo-me dos primeiros dias em que comecei a planear o primeiro livro da minha vida, esse romance que ia escrever nas águas-furtadas do sexto andar do número 5 da rue Saint-Benoît e que a partir do primeiro momento, desde que encontrei o argumento num livro de Unamuno, se intitulou La asesina ilustrada. Embora nesse tempo tivesse uma relação muito idiota com a morte, ou precisamente por isso, o romance propunha-se matar quem o lesse, matar o leitor segundos depois de ele o dar por terminado. Foi uma ideia inspirada pela leitura de Como SE Faz Um Romance, um ensaio de Unamuno que descobri numa banca de livros ao longo do Sena e que me tinha chamado a atenção devido ao título, pois pensei que falava do que eu precisamente não sabia fazer. Mas não, falava de tudo menos de como se escrevia um romance. No entanto, num parágrafo onde Unamuno especulava com livros que provocam a morte dos seus leitores, encontrei uma boa ideia para contar uma história.

Um dia, cruzei-me com Marguerite Duras na escada – eu subia para a minha chambre e ela descia para a rua – e mostrou-se subitamente interessada em saber com que coisas andava entretido. E eu, pretendendo armar-me em importante, disse-lhe que me propunha escrever um livro que provocasse a morte de todos os que o lessem. Marguerite ficou petrificada, sublimemente estupefacta. Quando conseguiu reagir, disse-me – ou julguei que me dizia, porque voltou a falar-me no seu francês superior – que matar o leitor, além de um despropósito, era praticamente impossível, a menos que, por exemplo, de dentro do livro saísse disparada uma veloz e afiada flecha envenenada que fosse direta ao coração do desprevenido leitor. Fiquei muito aborrecido e até cheguei a temer que me deixasse sem as águas-furtadas, temi que descobrir que eu era um principiante sem demasiado interesse a levara a isso. Mas não, Marguerite detetou simplesmente em mim uma descomunal confusão mental e quis ajudar-me. Acendeu pausadamente um cigarro, olhou-me meio compassivamente e acabou por me dizer que, se queria assassinar quem lesse o livro, o devia fazer com base num efeito textual. Disse isto e continuou a descer a escada deixando-me mais preocupado do que estava. Eu tinha entendido bem ou o seu francês superior tinha-me feito entender mal? Que era aquilo de efeito textual? Talvez se tivesse referido a um efeito literário que eu mesmo me deveria encarregar de construir dentro do texto para causar ao leitor a impressão de que as próprias letras do texto o iam matando. Talvez fosse isso. Mas, em todo o caso, como conseguir um efeito literário que pulverizasse o leitor de uma forma só textual?

Após uma semana de duras interrogações e sombras negras que para meu desespero se abatiam sobre o meu trabalho literário, voltei a cruzar-me com Marguerite na escada. Desta vez, ela subia – como em tantos imóveis de Paris, não havia elevador – para o terceiro andar, onde ficava a sua casa. E eu descia do sexto, da minha modesta chambre, em direção à rua. Manejando novamente o seu francês superior, Marguerite perguntou-me, ou pareceu-me entender que me perguntava, se já tinha conseguido matar os meus leitores. Ao contrário do nosso anterior encontro, desta vez decidi não me armar em importante, quer dizer, não cair no ridículo, e procurar não ser só humilde como aproveitar qualquer lição que ela me pudesse transmitir. Contei-lhe, atabalhoadamente, com o meu francês inferior, ou se se quiser confuso, as dificuldades com que me debatia para conseguir pôr o meu romance em pé. Procurei explicar-lhe que, seguindo o seu conselho, já só queria provocar a morte do leitor praticando o crime no espaço estrito da escrita. «Mas é muito difícil de conseguir, uma vez que me encontro nele», acrescentei.

Então vi que, se eu não a entendia muito, tão-pouco ela me entendia a mim. Fez-se um sério silêncio. Então, procurando acabar com a tensão, tentei resumir-lhe o que se passava comigo, balbuciei sincopadamente isto: «Um conselho, é do que preciso, ajuda para o meu romance.» Desta vez Marguerite entendeu perfeitamente. «Ah, um conselho», disse, e convidou-me a sentar-me ali no hall (como se estivesse muito cansado), apagou lentamente o cigarro e pô-lo no cinzeiro da entrada e dirigiu-se, um tanto misteriosamente, para o seu escritório, donde voltou passado um minuto com uma folha de papel que parecia uma receita médica e continha umas instruções que podiam – disse-me, ou julguei entender que me dizia – ser-me úteis para escrever romances. Peguei na folha e dirigi-me para a rua. Li as instruções que continha pouco depois, já na rue Saint-Benoît, e senti que de repente desabava sobre mim todo o peso do mundo, ainda hoje recordo o pânico enorme – calafrio, para ser mais exato – que senti ao lê-las:

1. Problemas de estrutura. 2. Unidade e harmonia. 3. Enredo e história. 4. O fatot tempo. 5. Efeitos textuais. 6. Verosimilhança. 7. Técnica narrativa. 8. Personagens. 9. Diálogo. 10. Cenários. 11. Estilo. 12. Experiência. 13. Registo linguístico.”

 

Vila-Matas, Enrique, Paris Nunca Se Acaba, 2003, Editorial Teorema, Lisboa

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