Belíssimo texto. Para além do bom humor, é uma lição de escrita criativa.
Obrigada, Idalina, por mais esta partilha.
“Recordo-me dos primeiros dias em que comecei a planear o
primeiro livro da minha vida, esse romance que ia escrever nas águas-furtadas
do sexto andar do número 5 da rue
Saint-Benoît e que a partir do primeiro momento, desde que encontrei o
argumento num livro de Unamuno, se intitulou La asesina ilustrada. Embora nesse tempo tivesse uma relação muito
idiota com a morte, ou precisamente por isso, o romance propunha-se matar quem
o lesse, matar o leitor segundos depois de ele o dar por terminado. Foi uma
ideia inspirada pela leitura de Como SE
Faz Um Romance, um ensaio de Unamuno que descobri numa banca de livros ao
longo do Sena e que me tinha chamado a atenção devido ao título, pois pensei
que falava do que eu precisamente não sabia fazer. Mas não, falava de tudo
menos de como se escrevia um romance. No entanto, num parágrafo onde Unamuno
especulava com livros que provocam a morte dos seus leitores, encontrei uma boa
ideia para contar uma história.
Um
dia, cruzei-me com Marguerite Duras na escada – eu subia para a minha chambre e ela descia para a rua – e
mostrou-se subitamente interessada em saber com que coisas andava entretido. E
eu, pretendendo armar-me em importante, disse-lhe que me propunha escrever um
livro que provocasse a morte de todos os que o lessem. Marguerite ficou
petrificada, sublimemente estupefacta. Quando conseguiu reagir, disse-me – ou
julguei que me dizia, porque voltou a falar-me no seu francês superior – que matar o leitor, além de
um despropósito, era praticamente impossível, a menos que, por exemplo, de
dentro do livro saísse disparada uma veloz e afiada flecha envenenada que fosse
direta ao coração do desprevenido leitor. Fiquei muito aborrecido e até cheguei
a temer que me deixasse sem as águas-furtadas, temi que descobrir que eu era um
principiante sem demasiado interesse a levara a isso. Mas não, Marguerite
detetou simplesmente em mim uma descomunal confusão mental e quis ajudar-me.
Acendeu pausadamente um cigarro, olhou-me meio compassivamente e acabou por me
dizer que, se queria assassinar quem lesse o livro, o devia fazer com base num efeito textual. Disse isto e continuou a
descer a escada deixando-me mais preocupado do que estava. Eu tinha entendido
bem ou o seu francês superior
tinha-me feito entender mal? Que era aquilo de efeito textual? Talvez se tivesse referido a um efeito literário que eu mesmo me deveria
encarregar de construir dentro do texto para causar ao leitor a impressão de
que as próprias letras do texto o iam matando. Talvez fosse isso. Mas, em todo
o caso, como conseguir um efeito
literário que pulverizasse o leitor de uma forma só textual?
Após
uma semana de duras interrogações e sombras negras que para meu desespero se
abatiam sobre o meu trabalho literário, voltei a cruzar-me com Marguerite na
escada. Desta vez, ela subia – como em tantos imóveis de Paris, não havia
elevador – para o terceiro andar, onde ficava a sua casa. E eu descia do sexto,
da minha modesta chambre, em direção
à rua. Manejando novamente o seu francês superior,
Marguerite perguntou-me, ou pareceu-me entender que me perguntava, se já tinha
conseguido matar os meus leitores. Ao contrário do nosso anterior encontro,
desta vez decidi não me armar em importante, quer dizer, não cair no ridículo,
e procurar não ser só humilde como aproveitar qualquer lição que ela me pudesse
transmitir. Contei-lhe, atabalhoadamente, com o meu francês inferior, ou se se quiser confuso, as
dificuldades com que me debatia para conseguir pôr o meu romance em pé.
Procurei explicar-lhe que, seguindo o seu conselho, já só queria provocar a
morte do leitor praticando o crime no espaço estrito da escrita. «Mas é muito
difícil de conseguir, uma vez que me encontro nele», acrescentei.
Então
vi que, se eu não a entendia muito, tão-pouco ela me entendia a mim. Fez-se um
sério silêncio. Então, procurando acabar com a tensão, tentei resumir-lhe o que
se passava comigo, balbuciei sincopadamente isto: «Um conselho, é do que
preciso, ajuda para o meu romance.» Desta vez Marguerite entendeu
perfeitamente. «Ah, um conselho», disse, e convidou-me a sentar-me ali no hall (como se estivesse muito cansado),
apagou lentamente o cigarro e pô-lo no cinzeiro da entrada e dirigiu-se, um
tanto misteriosamente, para o seu escritório, donde voltou passado um minuto
com uma folha de papel que parecia uma receita médica e continha umas
instruções que podiam – disse-me, ou julguei entender que me dizia – ser-me
úteis para escrever romances. Peguei na folha e dirigi-me para a rua. Li as
instruções que continha pouco depois, já na rue
Saint-Benoît, e senti que de repente desabava sobre mim todo o peso do
mundo, ainda hoje recordo o pânico enorme – calafrio, para ser mais exato – que
senti ao lê-las:
1.
Problemas de estrutura. 2. Unidade e harmonia. 3. Enredo e história. 4. O fatot
tempo. 5. Efeitos textuais. 6. Verosimilhança. 7. Técnica narrativa. 8.
Personagens. 9. Diálogo. 10. Cenários. 11. Estilo. 12. Experiência. 13. Registo
linguístico.”
Vila-Matas, Enrique, Paris Nunca Se Acaba,
2003, Editorial Teorema, Lisboa