Noite
Estou a escrever à noite porque, durante
o dia, não tive tempo nem vontade. Acontece aos escritores e muito mais
facilmente a mim que não o sou, apesar do meu amor pela escrita.
O céu está sereno, embora as nuvens o
tinjam de tons pardacentos. Há muito que vivo só e julgo que assim quero
continuar.
Antes de o Félix ir para Moçambique,
falámos várias vezes sobre o assunto e vêm sempre à baila os casos de amigos
nossos que dormem em quartos separados ou em casas diferentes, e vivem felizes.
- Mas é preciso que a casa tenha espaço
ou que cada um aguente as despesas, diz sempre ele com o seu sorriso abraçador
(surgiu-me esta palavra, gostei e acho
que a vou adotar).
Durante a tarde, resolvi, fazer compota de
abóbora. Colei, nos frascos, uma etiqueta com flores rosadas miudinhas e que
embelezam aquele sabor doce e de cor outonal. Pu-los depois numa prateleira que
enfeitei com uma cortininha colorida de papel que recortei. Tal como faziam as
velhas senhoras da casa e a minha avó paterna.
Olhei em seguida a eira e vi-me em criança
a virar o milho em pequeninos carreiros para que todos os grãozinhos amarelos,
bem espalhados na pedra, secassem ao sol. Nunca mais esqueci o calor rugoso do
milho quente debaixo dos pés descalços.
Agora, é noite e escrevo porque as
palavras fazem-me falta se estiver muito tempo sem lhes tocar.
As luzes da sala estão acesas e vejo o
céu coberto de nuvens inertes. E também algum nevoeiro. Vou-me deitar. Gosto
pouco da noite. É a morte do céu e de quase todas as coisas.
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