"Os amigos" e
"Uma ambulância no verão"
Há pouco mais de um mês que estou
reformada, ou melhor, "reformulada", como às vezes digo em tom de
brincadeira.
Se estivesse no ativo, nesta altura já teria trabalhos e testes para
corrigir. E relatórios para redigir. E atas para elaborar. E dados estatísticos
para preencher. E informações para lançar na plataforma. E talvez alguma
participação disciplinar. E muito mais coisas, se calhar, necessárias, mas que
tiram tempo à boa preparação das aulas e ao conhecimento de muitos problemas
dos alunos.
E bastante preocupante é o facto de
haver jovens que não têm amigos "reais". Conheci vários.
De facto, tem-se a ideia de que todos os
jovens são folgazões, mas há muitos rapazes e raparigas profundamente
solitários e com o complexo de que são feios e de que ninguém gosta deles.
As composições ou textos livres são
espaços privilegiados para os alunos se exporem um pouco mais. Lembro-me de uma
menina que ia sempre triste para a escola primária porque não era bonita como
as outras. Outra, demasiado magra. Outra que ficava sempre para trás, nos
intervalos, para poder estar sozinha e não ser gozada.
E muito comum é a dificuldade de muitos
alunos exporem trabalhos em frente à turma com medo de críticas ou de chacota.
Este fenómeno poderá ter a ver com as
vivências. Os espaços que muitos alunos frequentam são bastante restritos. É a
escola, a casa da família ou de algum amigo e, ao fim de semana, o Centro
Comercial. Nem mesmo a cidade mais próxima é conhecida.
E o mesmo acontece com muitas crianças.
São inúmeras as que, apesar de o tempo estar bom e convidativo para passeios ao
ar livre, ficam pelos espaços fechados de um Centro Comercial.
Dir-se-á que há mais segurança, que não
há vento, que não há sol em demasia, que não há os perigos dos carros, das
bicicletas, das trotinettes... mas são referências limitadas para seres em
crescimento.
Estava eu nestas cogitações, quando vi
que estava a receber um e-mail da Débora. Fiquei admirada, porque, desde que
concluiu o 12º, há uns três anos, nunca mais a vi nem recebi notícias dela.
Dizia que tinha escrito um livro sobre as memórias de uma ambulância
no verão, que gostava que eu o lesse e o corrigisse antes de seguir para a
editora, que pretendia o original quanto antes.
Em anexo, vinha o texto com erros
intermináveis de acentuação, pontuação, repetições de palavras... Meu Deus! Era
necessário reescrever quase tudo.
Em resposta, elogiei-lhe o propósito,
mas disse-lhe que os meus afazeres atuais não me permitiam fazer uma revisão
adequada como ela e o tema mereciam. Aconselhei-a a deixar passar algum
tempo, a reler o texto mais tarde e, por certo, veria facilmente aspetos que é
necessário corrigir. Depois dessa releitura, eu poderia ajudá-la.
Oxalá siga as minhas instruções e a
editora não lhe publique o texto assim.
No entanto, fiquei na dúvida. porque num
P.S., a Débora dizia que a tia, com quem sempre viveu, andava muito excitada e
já tinha comprado um vestido de cerimónia para o lançamento do livro.
Valha-me Deus! E a mim, que tenho tanto
respeito pelo trabalho dos bombeiros, aparece-me este texto cheio de luzinhas
vermelhas a piscar, como sinal de S.O.S.
O Ega, de Os Maias, começou a escrever Memórias
de um átomo e não o concluiu. A Débora começa e acaba Memórias de uma ambulância no verão, mesmo cheias de erros.
Apetecia pedir socorro ou chamar o 112!
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