sábado, 31 de dezembro de 2016

Um conto (ainda) de Natal!



Caminhos para as estrelas

Podia dizer-se que Celeste, embora de forma simples, vivia bem e sentia-se bem. Havia bastantes anos que alugara aquela casa. Já nem sabia ao certo quantos. E punha-se a pensar. Foi a seguir à partida do marido. Portanto, havia dez anos. Quando passou a viver só, optou por se mudar para uma casa mais pequena e os filhos concordaram.
Por essa altura, decidiu fazer o que nunca tinha conseguido concretizar até então: escrever diferentes histórias. Embora não fosse esse o seu principal objetivo, a escrita também atenuaria o peso magoado de alguma solidão.
Sempre escrevera pequenos contos dispersos, nos quais não reconhecia muita qualidade. Sentia que lhe faltava tempo e concentração para, maduramente, reler, corrigir e aprofundar as narrativas. Queria passar a fazê-lo o mais brevemente possível, mas o momento demorava a chegar.
Os filhos conheciam-lhe esse gosto e motivavam-na para que continuasse a escrever, também de forma mais abundante e sustentada, uma vez que dispunha agora de mais tempo; tinha acabado de se aposentar. Celeste, olhando as grandes obras de autores que moravam, sábios, na sua estante, achara sempre uma ousadia querer partilhar e publicar os  seus textos que, por vezes, até desvalorizava.
Porém, o melhor - concluía de forma positiva - era continuar a escrever, cada vez mais e melhor, reflexões, histórias, textos cuja escrita lhe dava imenso prazer. Às vezes, achava que escrevia mais para si e de si, embora, com as suas palavras, pretendesse abraçar todas as pessoas, sem as quais a vida não faria sentido. Mesmo assim, escrevia pouco, embora lhe andassem a bailar algumas ideias na cabeça. Tinha-as até registado num bloquinho que guardava na carteira. Precisava de sossegar ou de um impulso para passar à prática.
 Os filhos, sempre presentes no seu pensamento, viviam em diferentes países - um no Canadá e outro na Islândia. Tinham organizado a sua vida bem longe de Portugal, porque lá haviam encontrado melhor trabalho e mais reconhecimento profissional. Os netos frequentavam as escolas nos países de acolhimento, que já conheciam melhor do que o dos pais e avós, ao qual associavam sobretudo as férias grandes ou o Natal.
Antes da mudança, Celeste teve a preocupação de a casa dispor de espaço suficiente para que, quando os filhos e netos viessem a Portugal, pudessem lá ficar confortavelmente. Aquando das suas poucas visitas, a casa era toda arranjada, para ficar ainda mais bonita. Pelas claraboias, parecia entrar mais intensamente a luz.
De facto, a casa tinha várias claraboias que permitiam a Celeste ver, em qualquer momento, a luz do dia, o luar ou a escuridão da noite. Se havia nuvens, distinguia a cor com que o céu se tingia ou carregava. Quando chovia, sentava-se muitas vezes a olhar os pingos de chuva a cair e a escorrer, ronceiros mas brilhantes, nos vidros transparentes e retangulares. Até as luzes incertas das noites de trovoada a fascinavam.
Com o tempo, foi-se ligando àquela casa como a uma pessoa amada ou a um cão estimado, cuja companhia não se dispensa. Quando lhe ocorriam estas associações, logo se lembrava do  Dunas - o velho labrador - que vivera com a família mais de dez anos, como se dela fizesse parte. Olhando as claraboias, estas e muitas outras recordações cintilavam como estrelas.
 A casa, para Celeste, era o seu teto, o seu abrigo, um caminho para atingir as estrelas, apesar de achar indispensável o convívio com a família e amigos.
 Havia noites em que, entre as estrelas, via a fugaz luz faiscante de um avião e era inevitável pensar em possíveis viagens para visitar os filhos e os netos: as suas estrelas. Seria difícil a deslocação, porque ficaria muito cara por ser enorme a distância.
Se continuasse a escrever, como pretendia, poderia imaginar que todos viviam mais próximos. Organizar as ideias e as palavras seria também um caminho para aceder a mais momentos felizes. Motivos para as suas histórias não faltavam. Tanta coisa acontecia em cada momento e a memória estava também tão preenchida. Era, de facto, urgente começar a escrever como pretendia. Tanto tinha desejado escrever mais e melhor e agora, que tinha mais tempo livre, ia adiando o seu projeto. Os filhos e os netos faziam-lhe falta, mesmo para escrever.
Num fim de tarde de início de dezembro, sentou-se no cantinho habitual do sofá e, olhando o céu escuro e invernoso, lembrou-se de que em breve o Natal chegaria. Sempre o tinha passado em família. Uma família grande e calorosa. Passavam tempos em que não se encontravam, mas todos sabiam que podiam contar uns com os outros. Pena sentia de não ter a companhia aconchegante dos filhos e dos netos que este ano haviam decidido não vir a Portugal, dizendo que, possivelmente, em breve se encontrariam.  Celeste interrogava-se: Em breve? Mas quando? Como? Onde?
No dia de Natal, apesar da diferença horária, falariam pelo Skype. Não era a mesma coisa, mas já era alguma coisa. Habituara-se, com o avançar dos anos, a não exigir mais do que a vida lhe ia dando. E já era tanto!
De facto, depois de algumas perdas muito importantes e da mudança para a casa das claraboias, tendo-se despojado de muita coisa que não considerava essencial, aprendera a relativizar os problemas e a gostar de ver bocadinhos de céu em vez de pretender abarcar o Céu por inteiro.
Os filhos e os netos iam dando notícias quase diariamente pelo Skype ou pelo WhatsApp; estavam bem, o que lhe dava consolo. A avaliar pelas imagens e palavras recebidas, todos pareciam saudáveis e felizes. Via que se olhavam amorosamente, que sorriam uns para os outros, que trocavam palavras de carinho e apreço. Que mais poderia desejar como presente de Natal?
Educara os filhos para serem cidadãos  honestos, responsáveis e respeitadores do outro - fosse ele pessoa ou elemento da Natureza. E tinham excedido em muito o que lhes ensinara. Não teria a sua presença neste Natal, mas estaria com a restante família à qual estava profundamente ligada. E pensava para si que os filhos e os netos nunca deixavam de estar com ela.
Na véspera de Natal à noite, depois de arrumadas as travessas do bacalhau com batatas e hortaliças - tudo viera para a mesa a fumegar ; os pratos de aletria, de rabanadas - adoçantes do ar e dos sentidos; os sacos abertos das prendas - que eram feitas cada vez mais por cada um a pensar em cada um, regressou a casa. O familiar convívio natalício e festivo enchia-lhe a alma, mas voltar a casa era sempre regressar ao seu pequeno paraíso, como a um prolongado, sereno e amado abraço.
Antes de se deitar, sentou-se no seu lugar preferido do sofá, olhando, mais uma vez, a claraboia do teto da sala. Viu, então, um avião que deixava um lastro reluzente. Parecia viajar entre as estrelas.
De repente, acendeu a luz, leu e releu as mensagens que, no momento, estava a receber pelo WhatsApp. Ajeitou os óculos e voltou atrás para confirmar o que lia. Queria ter a certeza dos presentes que estava a receber.
Cada um dos filhos oferecia-lhe uma viagem, para breve, ao país para onde tinham emigrado. Celeste poderia, assim, abraçar os filhos e os netos, passar com eles algum tempo e conhecer melhor a região.
Respirou fundo, olhou a claraboia e o céu, que sempre lhe aparecia aos bocadinhos, naquela noite desenhava-se como inteiro.
Entretanto, olhou para o computador dizendo, decidida e confiante,  para si: não me vou deitar sem começar a escrever uma das histórias que andam na minha cabeça há tanto tempo.
Seriam um presente para os netos.  Pô-las-ia em forma de livrinho, em papel claro e luzidio, e juntar-lhes-ia imagens que aumentassem o brilho das palavras. Poderiam lê-las em conjunto.
Olhando o céu através das claraboias e imaginando as próximas viagens para rever os filhos e os netos, logo lhe surgiu um título para a primeira história: "Janelas para as minhas estrelas".

Maria Dolores Garrido
In Lugares e Palavras de Natal
Editora Lugar da Palavra

Sem comentários:

Enviar um comentário