Caminhos para as estrelas
Podia
dizer-se que Celeste, embora de forma simples, vivia bem e sentia-se bem. Havia
bastantes anos que alugara aquela casa. Já nem sabia ao certo quantos. E
punha-se a pensar. Foi a seguir à partida do marido. Portanto, havia dez anos.
Quando passou a viver só, optou por se mudar para uma casa mais pequena e os
filhos concordaram.
Por
essa altura, decidiu fazer o que nunca tinha conseguido concretizar até então:
escrever diferentes histórias. Embora não fosse esse o seu principal objetivo, a
escrita também atenuaria o peso magoado de alguma solidão.
Sempre
escrevera pequenos contos dispersos, nos quais não reconhecia muita qualidade. Sentia
que lhe faltava tempo e concentração para, maduramente, reler, corrigir e
aprofundar as narrativas. Queria passar a fazê-lo o mais brevemente possível,
mas o momento demorava a chegar.
Os
filhos conheciam-lhe esse gosto e motivavam-na para que continuasse a escrever,
também de forma mais abundante e sustentada, uma vez que dispunha agora de mais
tempo; tinha acabado de se aposentar. Celeste, olhando as grandes obras de autores
que moravam, sábios, na sua estante, achara sempre uma ousadia querer partilhar
e publicar os seus textos que, por vezes,
até desvalorizava.
Porém,
o melhor - concluía de forma positiva - era continuar a escrever, cada vez mais
e melhor, reflexões, histórias, textos cuja escrita lhe dava imenso prazer. Às
vezes, achava que escrevia mais para si e de si, embora, com as suas palavras, pretendesse
abraçar todas as pessoas, sem as quais a vida não faria sentido. Mesmo assim,
escrevia pouco, embora lhe andassem a bailar algumas ideias na cabeça. Tinha-as
até registado num bloquinho que guardava na carteira. Precisava de sossegar ou de
um impulso para passar à prática.
Os filhos, sempre presentes no seu pensamento,
viviam em diferentes países - um no Canadá e outro na Islândia. Tinham organizado
a sua vida bem longe de Portugal, porque lá haviam encontrado melhor trabalho e
mais reconhecimento profissional. Os netos frequentavam as escolas nos países
de acolhimento, que já conheciam melhor do que o dos pais e avós, ao qual associavam
sobretudo as férias grandes ou o Natal.
Antes
da mudança, Celeste teve a preocupação de a casa dispor de espaço suficiente
para que, quando os filhos e netos viessem a Portugal, pudessem lá ficar
confortavelmente. Aquando das suas poucas visitas, a casa era toda arranjada,
para ficar ainda mais bonita. Pelas claraboias, parecia entrar mais intensamente
a luz.
De
facto, a casa tinha várias claraboias que permitiam a Celeste ver, em qualquer
momento, a luz do dia, o luar ou a escuridão da noite. Se havia nuvens,
distinguia a cor com que o céu se tingia ou carregava. Quando chovia, sentava-se
muitas vezes a olhar os pingos de chuva a cair e a escorrer, ronceiros mas
brilhantes, nos vidros transparentes e retangulares. Até as luzes incertas das noites
de trovoada a fascinavam.
Com o
tempo, foi-se ligando àquela casa como a uma pessoa amada ou a um cão estimado,
cuja companhia não se dispensa. Quando lhe ocorriam estas associações, logo se
lembrava do Dunas - o velho labrador -
que vivera com a família mais de dez anos, como se dela fizesse parte. Olhando
as claraboias, estas e muitas outras recordações cintilavam como estrelas.
A casa, para Celeste, era o seu teto, o seu
abrigo, um caminho para atingir as estrelas, apesar de achar indispensável o
convívio com a família e amigos.
Havia noites em que, entre as estrelas, via a fugaz
luz faiscante de um avião e era inevitável pensar em possíveis viagens para
visitar os filhos e os netos: as suas estrelas. Seria difícil a deslocação, porque
ficaria muito cara por ser enorme a distância.
Se
continuasse a escrever, como pretendia, poderia imaginar que todos viviam mais
próximos. Organizar as ideias e as palavras seria também um caminho para aceder
a mais momentos felizes. Motivos para as suas histórias não faltavam. Tanta
coisa acontecia em cada momento e a memória estava também tão preenchida. Era,
de facto, urgente começar a escrever como pretendia. Tanto tinha desejado
escrever mais e melhor e agora, que tinha mais tempo livre, ia adiando o seu
projeto. Os filhos e os netos faziam-lhe falta, mesmo para escrever.
Num
fim de tarde de início de dezembro, sentou-se no cantinho habitual do sofá e,
olhando o céu escuro e invernoso, lembrou-se de que em breve o Natal chegaria.
Sempre o tinha passado em família. Uma família grande e calorosa. Passavam
tempos em que não se encontravam, mas todos sabiam que podiam contar uns com os
outros. Pena sentia de não ter a companhia aconchegante dos filhos e dos netos
que este ano haviam decidido não vir a Portugal, dizendo que, possivelmente, em
breve se encontrariam. Celeste
interrogava-se: Em breve? Mas quando? Como? Onde?
No
dia de Natal, apesar da diferença horária, falariam pelo Skype. Não era a mesma
coisa, mas já era alguma coisa. Habituara-se, com o avançar dos anos, a não
exigir mais do que a vida lhe ia dando. E já era tanto!
De
facto, depois de algumas perdas muito importantes e da mudança para a casa das
claraboias, tendo-se despojado de muita coisa que não considerava essencial,
aprendera a relativizar os problemas e a gostar de ver bocadinhos de céu em vez
de pretender abarcar o Céu por inteiro.
Os
filhos e os netos iam dando notícias quase diariamente pelo Skype ou pelo WhatsApp;
estavam bem, o que lhe dava consolo. A avaliar pelas imagens e palavras
recebidas, todos pareciam saudáveis e felizes. Via que se olhavam amorosamente,
que sorriam uns para os outros, que trocavam palavras de carinho e apreço. Que
mais poderia desejar como presente de Natal?
Educara
os filhos para serem cidadãos honestos,
responsáveis e respeitadores do outro - fosse ele pessoa ou elemento da
Natureza. E tinham excedido em muito o que lhes ensinara. Não teria a sua
presença neste Natal, mas estaria com a restante família à qual estava profundamente
ligada. E pensava para si que os filhos e os netos nunca deixavam de estar com
ela.
Na
véspera de Natal à noite, depois de arrumadas as travessas do bacalhau com
batatas e hortaliças - tudo viera para a mesa a fumegar ; os pratos de aletria,
de rabanadas - adoçantes do ar e dos sentidos; os sacos abertos das prendas -
que eram feitas cada vez mais por cada um a pensar em cada um, regressou a
casa. O familiar convívio natalício e festivo enchia-lhe a alma, mas voltar a
casa era sempre regressar ao seu pequeno paraíso, como a um prolongado, sereno
e amado abraço.
Antes
de se deitar, sentou-se no seu lugar preferido do sofá, olhando, mais uma vez,
a claraboia do teto da sala. Viu, então, um avião que deixava um lastro
reluzente. Parecia viajar entre as estrelas.
De
repente, acendeu a luz, leu e releu as mensagens que, no momento, estava a
receber pelo WhatsApp. Ajeitou os óculos e voltou atrás para confirmar o que
lia. Queria ter a certeza dos presentes que estava a receber.
Cada
um dos filhos oferecia-lhe uma viagem, para breve, ao país para onde tinham
emigrado. Celeste poderia, assim, abraçar os filhos e os netos, passar com eles
algum tempo e conhecer melhor a região.
Respirou
fundo, olhou a claraboia e o céu, que sempre lhe aparecia aos bocadinhos,
naquela noite desenhava-se como inteiro.
Entretanto,
olhou para o computador dizendo, decidida e confiante, para si: não me vou deitar sem começar a
escrever uma das histórias que andam na minha cabeça há tanto tempo.
Seriam
um presente para os netos. Pô-las-ia em
forma de livrinho, em papel claro e luzidio, e juntar-lhes-ia imagens que
aumentassem o brilho das palavras. Poderiam lê-las em conjunto.
Olhando
o céu através das claraboias e imaginando as próximas viagens para rever os
filhos e os netos, logo lhe surgiu um título para a primeira história: "Janelas
para as minhas estrelas".
Maria
Dolores Garrido
In Lugares e Palavras de Natal
Editora Lugar da Palavra
Sem comentários:
Enviar um comentário