A propósito das afirmações, loucas e desrespeitosas, de José Cid
sobre os transmontanos, e que têm gerado um mar de críticas,
lembrei-me deste texto
que postei em fevereiro de 2014.
Partilho-o de novo.
E ando com saudades de ir a Trás-os-Montes, apesar de gostar muito do mar.
Van Gogh |
Quando era pequena, ouvia a minha mãe dizer que, na
cidade, havia um mar de gente. E também falava do mar de água que ela dizia
ficar muito muito longe. Demorava tanto a dizer a palavra que parece que ainda
oiço aquele eco: looooooonnnge. Falava também do grande oceano.
Senti sempre alguma curiosidade por saber como era o
mar tão grande, assim como era o mar de gente. Nunca tive tempo nem
oportunidade. Casei muito nova. Tinha a família, o campo, os animais… E também
montanhas com neve ou secas pelo sol que pareciam barreiras.
Há muitos anos que os meus filhos saíram da aldeia.
Foram abandonando a terra, enquanto se faziam homens. Como todas as outras
pessoas mais novas e com força, foram trabalhar para longe e tudo foi morrendo
aos poucos. Ficaram os velhos nas casas cada vez mais velhas e escuras. A
aldeia, tal como as pessoas, envelheceu. Ficámos todos mais fracos e sós.
Os meus filhos quiseram sempre que eu
conhecesse a cidade e que eu visse o mar. Acabei por vir, porque não gosto de
dizer não aos meus filhos. Já bastou o tempo em que não lhes podia dar os
brinquedos que pediam. O que valia é que gostavam das histórias que eu lhes
contava. Olhava à minha volta e logo inventava um continho, como eu gostava de
lhes dizer. Lembro-me da história do milho cor-de-rosa, da cereja-brinco-de-princesa,
da castanha que gostava de apanhar sol, da geada endiabrada, da bola de trapos
que se desfez antes de chegar à baliza…
Agora aqui estou em frente ao mar e só me apetece
olhar e ficar calada. A luz é tão forte que mantenho os olhos quase fechados. Parece
que estou numa festa, porque posso descansar e ver muita gente a passear. As
pessoas não parecem ter pressa. A esta hora, se eu estivesse na minha aldeia, teria
de recolher o gado e dar-lhe de comer. E acender o lume. Às vezes nem reparo
nas cores do pôr-do-sol. E, no entanto, há turistas que ficam na estalagem que
há na aldeia, atraídos pela paisagem do fim do dia, como se fosse íman
para os seus olhos.
Agora que estou perto do mar, parece que oiço tudo
melhor. E vejo melhor também. O cheiro é fresco e azul. Afinal estou a gostar
de ter vindo.
O barulho das gaivotas é que parece agoirento. Parece
que chamam ou gritam! Fazem-me lembrar uma rapariga da aldeia que decidiu
emigrar. Dizia que não sabia como as pessoas podiam viver encarceradas entre
montanhas que escondiam o céu. Algum tempo depois regressou. Deixou crescer os
cabelos crespos e punha-se a cantar canções estranhas até de madrugada, à
janela. As músicas falavam de um amor infeliz e de segredos nunca contados.
O mar é muito mais largo do que eu pensava. Faz muito
barulho e as ondas, quando saltam, são mais altas do que os rochedos. A espuma
parece neve no inverno da minha aldeia.
Quando abro os
olhos e vejo este mar cheio de luz, sinto-me pequenina. Parece que me cega. Lembro-me
da minha terra que está muito distante. Não quero regressar por enquanto. O mar
não pode ser visto a correr. É como os montes. Quem os olha só da estrada não
os fica a conhecer nem os guarda na memória.
Olho para o mar
e parece que estou a ver e a ouvir a minha mãe. Ela, uma vez, ensinou-me uma
palavra que ouvira de uma senhora da aldeia que tinha livros que lia numa
casa à beira-mar. Essa palavra era maresia.
Só agora a percebi melhor.
Assim como entendi a voz antiga de minha mãe.
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