Van Gogh |
Vejo
ainda o caminho com muita nitidez. Era muito longo e decidi percorrê-lo a pé.
Sabia que ia demorar a chegar ao fim, mas a decisão estava tomada e nem pensei
sequer voltar atrás ou utilizar qualquer meio de transporte.
A
estrada abria-se pelo meio de terreno arborizado. Muitas das árvores e arbustos
tinham nascido espontaneamente. Umas vezes, porque as sementes vinham ali
parar, trazidas pelo vento, outras, porque se agarravam à terra e cresciam na
força da verde e abundante vizinhança. Nem todas as plantas eram macias e
lisas; havia tojo que escondia a flor da urze. As mimosas também se fechavam na
cor e no perfume, porque o tempo era de frio inverno.
A
estrada era de alcatrão negro, com alguns sulcos pela sua abertura recente. Não
se viam, porém, máquinas nem trabalhadores a alisar o piso.
Tendo
optado por ir a pé, percorreria a estrada, tal como se encontrava.
Caminhava
e não via ninguém nem nenhuma habitação, onde me pudesse refugiar ou pedir ajuda.
Ainda que fossem ruínas; nelas sempre me poderia abrigar ou esconder-me, se
algum animal irrompesse do mato, ou se alguém me atacasse. Mas não, nenhuma espécie
de construção se erguia nas imediações daquela estrada que eu percorria
sozinha. Não me lembro, contudo, de ter olhado alguma vez para trás, mas devo
tê-lo feito.
Comecei
a observar com frequência o céu. Não que buscasse apenas proteção divina, mas
porque se carregava de nuvens grossas e escuras. A chuva não tardaria em cair e
adivinhava-se trovoada. Sentia medo, porque as tempestades sempre me
assustaram. E naquele descampado, o desamparo tornava-me um ponto minúsculo,
indefeso, um pequeno desenho em movimento, tentando chegar o mais depressa
possível ao seu destino, com a angústia de todas as forças que pesavam sobre
mim.
De
repente, emergiu do caminho uma jovem com uma pequena banca de artesanato.
Aproximei-me. A artesã mostrou-me o seu trabalho com carinho e paciência. Vendia
bonecas que fazia com pedacinhos de tecido de que tanto gostava e que ia guardando
desde a infância. Juntava-lhes pequenas histórias que ela própria inventava.
Sentia que era uma forma de conservar a inocência e as palavras.
Retomei
o trajeto. Como não havia trânsito, eu caminhava quase sempre no meio da
estrada, olhando, frequentemente, para o chão, porque o piso tinha
irregularidades. Podia, de repente, tropeçar e cair, sem ter ninguém para me ajudar
a levantar. A jovem artesã já nem sequer se avistava.
Mais
longe, e do outro lado da rua, deparei com outra pequena banca. Desta vez, era
um rapaz que fazia e vendia bonés de todas as cores. Na passagem, olhei para
ele e sorri-lhe. Continuou a coser um boné azul, como se as mãos lhe
obedecessem, mesmo sem as olhar. Desejei-lhe boa sorte e prossegui a caminhada,
sob um céu cada vez mais escuro e pesado.
A
estrada, sem curvas, desenhava-se rugosa. Só o reflexo de uma nesga de sol a
clareava de quando em vez.
Caminhando
sempre, dei comigo a pensar na trovoada que se avizinhava e no que faria quando
me confrontasse com o estrondo tremendo dos trovões. Pouco mais do que nada,
porque o cenário mantinha-se: uma estrada longa e ladeada de densa vegetação.
Não me adiantaria interromper o percurso, porque nem uma telha ou uma parede se
anteviam.
Se
a ameaça da tempestade se concretizasse, os artesãos, com quem me cruzara pelo
caminho, perderiam, por certo, muito do seu trabalho. Com persistência e
criatividade, teriam de o reconstruir ou adaptar. De nada valeria alegar perdas
por fenómenos naturais, porque as Companhias de Seguros diriam que tal não está
contemplado na letra, cada vez mais miudinha para que os olhos apressados do
dia a dia evitem a sua leitura. Seria inútil também comunicar ao Governo,
porque carta de artesão que pouco vende só aumentaria o deserto da espera. Os
mais pragmáticos diriam que o melhor seria tomar iniciativas mais rentáveis e
guardar a viola no saco porque a formiga sempre foi mais ganhadora do que a
cigarra.
A
estrada continuava difícil e interminável, ainda que algumas reflexões
ajudassem a vencer os obstáculos, uns reais, outros imaginários.
Se ao menos surgisse uma clareira que me
transmitisse a esperança de que os perigos tinham passado! O negrume continuava
no solo e no céu. A ausência de vida humana doía ainda mais do que o céu
ameaçador.
A
companhia de um cão seria bem-vinda. Poderia falar com ele, procurando
respostas no seu olhar e na sua presença fiel. Porém, apenas as árvores se
inclinavam pelo vento que soprava com mais força.
Desejava
encontrar outras bancas, outras pessoas com quem pudesse comunicar, que expusessem
o seu trabalho, mesmo sabendo que não seria visto nem apreciado por multidões.
Imaginava
alguém a escrever, à mão ou num computador, abrigado por quatro paredes, onde,
pelo menos numa, se abriria uma grande janela. Um ourives construindo, meticulosamente,
uma peça de que a filigrana do tempo ajudaria a conservar a perfeição. Uma
modista a pespontar a bainha de um vestido, ao som de um piano, no quarto de
costura onde os carrinhos de linhas, os fechos, os tecidos, os moldes
orquestravam múltiplas cores e espessuras. Uma bordadeira percorrendo os riscos
de um desenho, através da agulha que sabia, delicadamente, colocar no sítio
certo. Um pintor de cujas mãos saíam formas, reinventando novos objetos de
arte. Um professor ensinando a ler e a escrever, aperfeiçoando gestos, sem os
quais a criança não aprenderia a crescer para o mundo. Um agricultor que,
amaciando a terra, facilitava o crescimento de salutares plantas. Um
investigador que, partindo de dados simples e concretos, chegava, pelo estudo persistente,
a uma solução vital. Um médico que, perante os sintomas de um doente, o ajudava
a saltar para a alegria de viver. Uma cozinheira combinando, gostosamente,
alimentos e condimentos, deles fazendo renascer felizes e apreciados sabores. Um
músico cujos sons reconstruíam novas melodias que fortaleciam a beleza e ensinavam
a amar os silêncios…
De
repente, senti um toque de mão pousando, sossegada, no meu braço. Seria alguém
a oferecer-me ajuda? Alguém com vontade de partilhar a voz humana? Alguém que,
docemente, me dissesse para não ter medo e que continuasse o rumo porque a intempérie
se tinha desviado? …
Eras
tu. Tu que conduzias o carro em silêncio, ouvindo, baixinho, uma canção tradicional
francesa, cantada por Anne Sofie von Otter, enquanto eu descansava um pouco.
Despertando, olhámo-nos e sorrimos. Parámos na Estação de Serviço mais próxima.
Caminhámos de mãos dadas. Enquanto sentia o sabor quente do café e o teu
abraçado calor, contei-te o meu sonho.
Tudo tão límpido e, aparentemente, tão real. Que
bom não me ter esquecido de tanta metáfora sonhada. Igualmente doce era o
aconchego de me escutares, olhando-me sem pressas.
A
Vida é também feita de sonhos.
E
de caminhos difíceis. E de solidões. E de medos. E de perigos. E de procuras.
Mas
também de marcos (in)esperados, onde apetece parar e ficar um pouco, dando e
recebendo novo alento para a Vida. Como pequenas bancas com água e alimentos
que os corredores de longa distância vão encontrando nas suas maratonas, sem as
quais dificilmente sustentariam o sonho de chegar e de vencer.
Voltando
ao carro, reparámos numa pequena magnólia que, branca, se abria no parque de
estacionamento.
Talvez
a urze e as mimosas também.
E esta estória, Dolores e Mariana, é digna de banda-sonora. Não sendo a canção tradicional de que se fala no fim da narrativa, é Anne Sofie com "Avec le Temps"
ResponderEliminarFica aqui! E até condiz em alguns momentos do sonho feito (em) Estrada!:
http://www.youtube.com/watch?v=Uvz3L-IvwaQ
um bom domingo!
beijinho,
IA
Obrigada, amiga, pela achega. É maravilhosa a música e a voz de Anne-Sophie. Como seria a vida sem músicas assim?
ResponderEliminarUm beijinho
M.