"(...) Os professores que mais me marcaram na
vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria
escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu,
comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção
nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações, nós é que
as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se
sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz
quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se fosse hoje: o
professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da
sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele se
transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um
mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o título da
redação, veio a surpresa do tema que
parecia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe.
Éramos
crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto
dele)
partilhasse
connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi
bem
mais do que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia
falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos
marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca
conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem
nenhum
artifício, sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava assim, e
eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho
tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão lembrar
o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa de profundamente
verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o demarcava dos outros
textos do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão
moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada.
Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como
vivemos as coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo (...)".
Mia Couto, (Um excerto da) Aula inaugural – Escola de Comunicação e Artes-UEM. 2012
Mia Couto, (Um excerto da) Aula inaugural – Escola de Comunicação e Artes-UEM. 2012
Recordo-me de, há uns trinta anos, começar a reparar no envelhecimento da minha mãe, através das mãos que iam ficando enrugadas. A mudança era mais nítida sobretudo no momento em que, estando toda a família à mesa, ela distribuía a comida pelos pratos.
E, felizmente, ainda posso dar comigo a olhar as mãos de minha mãe, agora que tem 87 anos.
As suas mãos preparam os alimentos, ajeitam a terra para conforto das
plantas, fazem cachecóis para os netos e
colchinhas para os bisnetos, seguram nas folhinhas soltas sobre vida de santos e nos pequenos jornais de relatos de exemplos cristãos,
erguem-se para o Céu em orações, semeiam e colhem flores para pôr no cemitério porque
muitos já partiram, alisam os pacotes
vazios para serem reutilizados, preparam pratinhos de aletria ou de leite-creme para o lanche que está sempre sobre a mesa enquanto a tarde se
ilumina, escrevem versos – muitos deles ainda inspirados no labor e nos ensinamentos da professora primária de há oitenta anos!
Hoje é o Dia da Mãe. E das muitas flores macias que saem das suas Mãos.
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