O
cais era o mesmo de sempre. Aliás, o único na pequena estação. O vento
gelado obrigou-me a envolver a cabeça no cachecol e a calçar as luvas.
Apenas três passageiros desceram comigo em direção ao túnel, donde
subiram pela escada do lado oeste que conduz à vila, enquanto eu me
servi da do lado leste, da chamada «escada do monte».
Depois
de chegar ao cimo, parei, pousei a mala e olhei em volta: o céu
cinzento, o monte calado, solitário, remoto; as árvores despidas,
negras, de luto. E no entanto era Domingo de Páscoa.
Quando
ia de novo levantar a mala, reparei no cão. Como sempre estava ali,
grande, cinzento, malhado de preto. Fitou-me com olhar caloroso, mas não
se moveu do lugar. Transida de emoção, dei um passo em direção a ele:
vieste? E logo os olhos se extinguiram, ficaram como os das
estátuas.
Mesmo assim, estendi-lhe a mão, que eu bem sabia, ia tocar no vazio.
Subi
o monte. Entrei no jardim do hotelzinho onde florescia o croco azul. A
terra, ainda gelada, cumpria a data, não podia haver Páscoa sem croco.
— A primavera não veio este ano — disse a dona.
— Veio sim — retorqui. — Então o croco?
A casa estava aquecida. Desembaracei a cabeça do cachecol, tirei o casaco. O quarto dava para o pomar plantado encosta acima.
Afastei
o cortinado da janela muito larga e repousei os olhos nas macieiras
despidas, na terra escurecida pelo frio e, como se quisesse defender-me,
pousei as mãos na superfície quente de mármore que cobria os tubos de
aquecimento central. A mobília pintada de branco, animada por uma
toalha cor de framboesa em cima da mesa e almofadas às pintas
multicolores nas cadeiras, resultava num conforto um tanto infantil.
Estendi-me
sobre a cama, voltada para a janela. Fiquei de olhos postos nas
macieiras. A calma enchia-me de surpresa. O leve tique-taque do
despertador acentuava-a, mas, simultaneamente, desmentia que o tempo
tivesse parado ali.
Os
ramos desenhavam-se negros sobre o fundo do céu cinzento. Macieiras
mortas. Mas não: em breve estariam em flor e viriam então os frutos, em
matizes de verdes e vermelhos, anunciando a maturidade e com ela o
apogeu do ciclo; depois tudo voltaria a ser como naquele momento,
despido, frio, estranhamente belo. Um mundo perdido, irrecuperável e,
mesmo assim, ali e nos meus olhos...
E
nisto começa a nevar. Lentamente, silenciosamente a nevar. E a terra,
tão endurecida como um cadáver, cobre-se de branco, os ramos começam a
desenhar-se em branco sobre o céu dum cinzento agora mais claro, numa
delicadeza impressionante, confundindo-se com ele. Contenho a
respiração. Toda eu sou espanto. Os flocos balançam, bailam, lá fora
onde não há sopro de vento, dentro do quarto, dentro de mim, brancura
suave, imaculada, tranquila, movimento feito de graça... e então, por
entre os troncos negros das macieiras, mudo como aquela natureza, a
cauda entre as pernas altas, flocos de neve a cobrir-lhe o pelo, o cão.
Seguiu-me
portanto. Como há pouco, no cimo da escada, na gare, fico transida de
emoção. Era-me dolorosamente familiar, conhecia-o desde sempre, amava-o
desde sempre, ouvia-o uivar por mim nas horas de angústia. «Tu?»,
perguntei. E a palavra implantou-se no silêncio como uma árvore no
deserto.
Do
outro lado do vidro da janela olha-me com grandes olhos castanhos, de
pupilas azuis, em que a luz branca faz cintilar uma estrela. Sorrio-lhe
e então abana a cauda. «Seu tolo», digo na brincadeira do costume, e
logo o vejo levantar a pata para arranhar na janela. «Está bem, está
bem», digo, cheia de condescendência fingida, levanto-me e,
atravessando o vidro, vou ter com ele. Não consegue conter-se de
alegria. Como doido dança em redor de mim, encosta-se-me ao corpo,
roça-me o peito para eu lhe acariciar a cabeçorra; rebola-se no chão,
ergue-se de novo, salta-me à cara para a lamber num impulso de diabrura
e sinto-lhe o contacto do nariz frio e húmido contra a face. Mas
depois senta-se, compenetrado, sensato, inclina um pouco a cabeça,
fita-me de orelhas espetadas como quem escuta, uma pergunta ansiosa nos
olhos. Bem o entendo. P
or isso respondo: «Pois sim, vamos».
Mais
uma vez me salta à cara lambendo-me agradecido, depois corre em pulos
de satisfação, deitando as orelhas para trás, encosta acima. Um vento
muito leve agita as flores das macieiras e desprende-lhes os flocos de
pétalas brancas que, brandamente iluminadas pelo sol primaveril, flutuam
silenciosas no ar, deixando-se por fim cair, como que cansadas, sobre a
terra negra donde se exala o cheiro bom do princípio do mundo.
Os
cabelos soltos sobre os ombros, a correr loucamente, sigo o cão. Por
um instante ele para, volta-se, verifica que me encontro perto e desata
de novo aos pulos monte acima, em posição de desafio e de quem gosta
de demonstrar a sua superioridade física.
«Espera,
gabarola!», chamo, mas faz de conta que não ouve e só depois de
chegado lá ao cimo deixa de continuar em frente para, em vez disso, vir
novamente ter comigo, acompanhando-me até ao mesmo lugar.
Vasto
e verde, tão verde, o planalto estende-se até à orla negra da
floresta. Nunca antes o azul do céu fora tão transparente, o amarelo
das dentes-de-leão tão radiante, o ar tão macio. Lado a lado, o cão e
eu detemo-nos um bocado no sonho para em seguida recomeçarmos o nosso
jogo de «agarra», correndo e saltando para a direita, para a esquerda e
em ziguezague, até cairmos exaustos sobre a relva, eu a cara em fogo,
ele ofegante, a língua de fora. «Pobre, pobre», digo e enterro a cabeça
no seu pelo fofo, donde lhe tiro carinhosamente algumas pétalas de
flor de macieira. E falo-lhe.
Conto-lhe
coisas, muitas coisas, e ele ouve, silencioso, pacífico como o cair
das pétalas na primavera e o da neve no inverno. Não há pressa, não há
horas. Tínhamos abandonado o tempo para nos instalarmos na vasta
planície verde onde as flores em lume são eternas. Ali não se conhece
nem fim nem princípio, nada foi, nada é, nada será. Uma criança fala, e
as suas palavras vão de alma a alma, em linha reta, sem curvas, sem
desvios. Palavras sem fechaduras, sem chaves, sem rótulos, mas livres
como pássaros, nuas como adolescentes banhando-se em fontes de floresta,
abertas, imensas como o mar verde onde navegam barcos que não buscam
margens nem destinos.
Sonhamos
assim. E não há idade encerrada num ciclo iniciado nas trevas e
terminando nas trevas. Sonhamos como se tivéssemos chegado da luz,
vivêssemos na luz, regressássemos à luz...
— Posso entrar?
É a dona do hotelzinho que me traz o café. Pousando o tabuleiro sobre a toalha cor de framboesa, diz:
— Pensei que um café lhe saberia bem num dia como este.
E olhando o nevão por detrás da janela:
— Coisa tão rara, uma Páscoa branca.
— A janela, dantes, era muito estreita — digo eu — mas acho-a bonita assim larga.
E ela, surpreendida:
— Conhecia a casa?
— Conhecia. E as macieiras também.
Ilse Losa
O barco afundado
Lisboa, Editorial Novaera, 1979
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