Carta ao pai
por João Tordo, em  19.02.14
Ontem, o meu pai foi-se embora. Não foi e já volta; emigrou para o 
Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A 
sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena 
reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os 
últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os 
concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, 
meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu 
trabalho) com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à 
bilheteira. Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo,
 senti-me feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e 
não os pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de 
conseguir baralhar essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem 
de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o 
desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar. 
Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém, excepto à 
família do senhor Tordo. Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da
 música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a
 sua partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha 
contacto regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar 
mediática. E é essa a razão pela qual escrevo: porque, quase sem o 
querer, li alguns dos comentários à sua partida. Muita gente se despediu
 com palavras de encorajamento. Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. 
Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram que já devia ter emigrado há 
muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. 
Associam-no à política, de que se dissociou activamente há décadas 
(enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros 
músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um 
povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC's e cozinhas? Usufruir 
da reforma dourada? Agarrar um "tacho" proporcionado pelos "amiguinhos"?
 Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que "deixasse cá a 
reforma". Os duzentos e tal euros. Eu entendo o desamor. Sempre o 
entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos como vivemos e 
onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O que eu não 
entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos como 
todos nós - e como todos os autores destes singelos insultos -, fez 
aquilo que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da
 história da música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para
 algumas das vozes mais apreciadas do público de hoje - Carminho, Carlos
 do Carmo, Marisa, são incontáveis - fez alguns dos temas que irão 
perdurar enquanto nos for permitido ouvir música. Pouco importa quem é o
 homem; isso fica reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu 
conheço-o: é um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida
 e que, ontem, partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 
65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o 
mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas 
encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará 
senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha. Os 
nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a
 crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A 
primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A segunda 
foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos 
os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros 
como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para 
dar cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele, 
cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e 
para os netos. Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que
 podíamos mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la,
 deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do 
conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de
 trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num 
pedinte - pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora. Ontem, ao 
deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a sonhar com o futuro; 
bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu vou ter muitas saudades 
dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi 
embora.
in http://joaotordo.blogs.sapo.pt/

in http://joaotordo.blogs.sapo.pt/
ResponderEliminarEncontrei, hoje, este comentário a uma notícia sobre o actual clima económico em Portugal, bem a propósito da sempre actual situação do país e da "sangria" demográfica que lhe tem andado associada. É incrível a actualidade do nosso Eça de Queiroz.
«Querido Leitor: nunca penses em servir o teu país com a tua inteligência, e para isso em estudar, em trabalhar, em pensar! Não creias na inteligência, crê na intriga! Não estudes, corrompe! Não sejas digno, sê hábil! E sobretudo nunca faças um concurso: ou quando o fizeres em lugar de pôr no papel que está diante de ti o resultado de um ano de trabalho, de estudo, escreve simplesmente: sou influente no círculo tal e não mo façam repetir duas vezes!»
«É estranho – que haja quem estranhe a emigração. Nós estamos num estado comparável à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa – citam-se a par da Grécia e Portugal.
…Ora na Grécia, o facto permanente é a emigração. E nós emigramos, pelo mesmo motivo que o grego emigra – a necessidade de procurar longe o pão que a pátria não dá.
… Que querem os senhores que se faça num país destes? Sair, fugir, abandoná-lo. O país é belo sim, de deliciosa paisagem. Mas a politica, a administração, tornaram aqui a vida intolerável. Seria doce gozá-lo, não tendo a honra de lhe pertencer. Só se pode ser português, sendo-se inglês!
… Mas enfim é tomar o caminho – é implicitamente confessar que a vida é extremamente difícil em Portugal – e que a acção natural que todo o cidadão português deve ao seu país – é abandoná-lo».
Eça de Queiroz – As Farpas - Novembro de 1871
Beijinhos
A.V.
Obrigada, amiga
ResponderEliminarTem toda a pertinência o teu comentário.
Um beijinho
M.