domingo, 1 de dezembro de 2013

Os chapéus de palha e a minha árvore de Natal




Mandei abater a árvore mais alta do meu jardim. Era um abeto. Trouxe-o de um país do norte da Europa, mas não quero que pensem que o arranquei da floresta.
Sempre gostei de abetos. Aprendi a conhecê-los melhor também nos livros de Sophia e não sosseguei enquanto não plantei um no meu jardim, mesmo à frente da casa.
 Quis que viesse de um país do Norte da Europa, de vegetação verde, fria e densa. Como tive a oportunidade de ir à Floresta Negra, na Alemanha, não desperdicei a ocasião. Trouxe-o num saquinho de plástico transparente, com um fio atado à volta da raiz que cobri com água. As folhas e o caule ficaram ao ar e aconcheguei cuidadosamente o pequeno abeto dentro de um saco de papel, aberto, para que a respiração da planta fosse possível. Na viagem de regresso, o pinheiro já era como um amigo de quem não me queria separar.
Quando cheguei a casa, plantei-o e fui acompanhando, atentamente, o seu crescimento. Passou a morar no meio do jardim. Aproximava-me dele todos os dias e falava-lhe com carinho, dizendo-lhe: já me dás pelos joelhos, já me chegas à cintura, já está maior do que eu…
Via-se que o abeto gostava do sítio onde vivia e que tinha sido demoradamente escolhido por mim, depois de me ter informado das condições necessárias para que se desenvolvesse, uma vez que vinha do Norte da Europa e o nosso país fica no Sul.
Num dia quente de verão, dei comigo sentada a reler um livro de Sophia, O Cavaleiro da Dinamarca, à sombra do meu abeto. O cenário era perfeito.
Nessa altura, já estava bem maior do que eu. E mais largo. Parecia o rei do meu jardim pela natural imponência e sobretudo pela grandiosa beleza, ainda que discreta.
 As minhas amigas diziam-me: como o pinheiro cresceu! Sei até que havia quem chamasse à nossa habitação “a casa do abeto”, porque era o elemento natural que logo sobressaía. Como a família gostou da designação, pintámos num azulejo: “Casa do abeto” e afixámo-lo na porta principal. Assim ficou e para sempre ficará, apesar de a nossa árvore já não estar entre nós.
Para além de dar tanta vida ao jardim, foi a nossa companhia ao longo de mais de uma dezena de Natais. Quando chegava dezembro, íamos ao sótão, abríamos a caixa das iluminações, pegávamos nos fios, descíamos ao jardim e começávamos a decorar o abeto, a nossa árvore viva do Natal.
 Era um trabalho em família, porque ninguém conseguia abraçar o abeto de uma só vez. Quando concluíamos a operação de colocar os fios à volta da árvore, ficávamos muito tempo a olhar as luzinhas a piscar. Nunca nos cansávamos de o fazer e era o primeiro presente de Natal que dávamos uns aos outros e também a quem passava na nossa rua.
Mas, como se sabe, antes do inverno vêm outras estações. O último verão foi extremamente quente, ao contrário do que se previa. Quando o calor apertava, eu regava o abeto várias vezes ao dia e fiz-lhe até uma cobertura, unindo vários chapéus de palha. Tinha de ser protegido e era a melhor maneira que eu encontrava para o resguardar dos fortes raios solares.
Durante o mês de agosto, nunca me afastei muito de casa para que o abeto não passasse sede. Um dia, estava eu sozinha, saí porque o calor apertava, queria ver o mar e sentir no rosto a clara frescura da maresia. Para que a árvore ficasse bem protegida do sol, fui buscar um outro chapéu de palha, de abas ainda mais largas e coloquei-o mesmo no cocuruto do abeto. O sol, assim, não lhe tiraria o viço da vida de que todos tanto precisávamos.
Passado pouco tempo, eu estava a chegar à praia que se estendia ao sol e às marés de viva frescura. Já era quase setembro, mas o calor continuava a apertar. Fui ficando até ao pôr do sol. Queria captar os inúmeros tons vermelhos convocados pelo astro-rei que partia, deixando a terra repousadamente escurecida. A praia ia ficando deserta, sendo visitada apenas pelas gaivotas que deixavam pequenas marcas triangulares e fugidias na areia.
Quando regressei a casa, pela noitinha, o trânsito estava interrompido na minha rua. Ainda me exasperei, querendo romper para chegar mais depressa e ver o que se passava. Os carros dos bombeiros eram muitos e era impossível avançar. A mata próxima da minha casa tinha ardido, atirando faúlhas e pedacinhos de fogo em todas as direções. Uma centelha caíra nos chapéus de palha que eu tinha posto sobre o abeto e logo começaram a arder, propagando-se à árvore que não resistiu às chamas malditas e devoradoras. Escapou apenas o tronco chamuscado que só agora mandei cortar, porque me lembrava a pele de um ser queimado e em sofrimento.
Vou fazer um banco com o tronco do abeto, depois de limpar os sinais rugosos de agonia, e colocá-lo no mesmo lugar onde viveu durante tanto tempo.
Porém, este ano, o Natal vai ser menos Natal. Falta-nos o nosso pinheiro e aquele presente a reluzir nas noites escuras e longas de dezembro.
Quando olho o meu jardim, lembro-me sempre daquele ser cuja vida segui de tão perto e cuja morte preparei sem contar.
Ah, é grande a nostalgia, tal como é a vontade de ser verdadeira. Por isso, quero dizer que arranquei, sim, arranquei o abeto da Floresta Negra, aproveitando uma distração do Guarda Florestal.
Se pudesse, ia lá ver se voltou para o seu lugar, renascido das próprias cinzas, e se se encontra a descansar, protegido por um manto de fina neve, e a comemorar, silenciosamente, o Natal.
Se assim fosse, jamais lhe tocaria. Apenas com as mãos leves da luz livre do olhar.

 Nota: Este conto foi publicado no livro
Lugares e Palavras de Natal 
Escolhi, para pseudónimo, 
Maria Neves.


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