quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A canção da avó

Gómez Oropeza

No coração do México, os falcões sobrevoam as altas montanhas, mergulhando em direção às encostas suaves, semeadas de milho. Debaixo do sol tropical, as iguanas descansam sobre rochedos brilhantes, e os tucanos conversam com os guaxinins empoleirados em árvores verde-esmeralda. Por entre as colinas, os pumas correm, as raposas cinzentas procuram galinhas, e os lobos uivam entre si, à noite.
Numa aldeia situada no sopé das montanhas, vivia uma avó com a neta. Plantavam milho, tomates e girassóis na Primavera e juntas viam os rebentos verdes despontar da terra. No Verão, colhiam lírios brancos como leite, punham-nos em cestos às costas, e levavam-nos para vender no mercado. Pelo Outono, decoravam caules esguios de milho para a festa das colheitas, a fim de agradecer os cereais de um ano inteiro. No Dia dos Mortos, costumavam erigir um altar e acender velas, relembrando os entes queridos. E no Natal, pegavam em cola e papel e faziam pinhatas, que enchiam com frutas e doces.
A avó era alta e imponente. Tinha as faces macias e as maçãs do rosto bem marcadas. Os olhos eram profundos, castanhos e doces. Embora tristes, eram bondosos. Tinha o peito largo e as ancas redondas. Pernas e pés robustos ligavam-na à terra, como se fosse uma árvore antiga. Os braços eram fortes e as mãos graciosas, com dedos longos e finos. Era uma mulher tão delicada como os rebentos de um jacarandá.
A neta gostava de explorar e de sonhar. Costumava brincar sozinha, nos campos e nas florestas, mas tinha medo das sombras escuras, dos barulhos dos animais, e de tudo o que fosse novo e diferente. “O que haverá no buraco desta árvore velha?” pensava, enquanto se erguia nos bicos dos pés e esticava o pescoço para espreitar o tronco oco. Contudo, mal ouvia um gato-do-mato nos ramos altos, começava a tremer dos pés à cabeça, como um saco de folhas secas a ondular numa tarde ventosa.
Certo dia, a neta assustadiça encontrou um tatu. Não passava de um vulgar tatu que se cruzara no seu caminho, mas a rapariga tremeu como se fosse um urso feroz com garras afiadas e dentes rangentes. Depois desse encontro, cada pequena sombra no caminho para casa iria transformar-se num monstro aterrador.
Quando a avó ouviu o barulho da porta, correu para a neta e abraçou-a. Em seguida, sentou-a ao colo e afagou-a com doçura. Enquanto lhe afagava o cabelo e as costas, ia cantando:
Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O mundo é um lugar assustador para os que não confiam. A minha ternura dar-te-á confiança: a confiança que sinto, a confiança que a minha avó sentia, e que herdou da avó dela.
A neta sentiu-se invadida por um calor reconfortante e, enquanto o sol se punha, deixou de tremer e adormeceu.
No dia seguinte, um grupo de crianças surpreendeu-a enquanto brincava à beira da estrada. Rindo e gritando, correram para ela e perguntaram-lhe:
— Onde fica o rio?
Em vez de fugir, a menina apontou com o dedo para a esquerda. Embora tremesse por dentro, o dedo mantivera-se firme. Nessa noite, contou à avó o que acontecera. A avó sorriu:
— Isso já é um progresso.
Pegou na neta ao colo e afagou-a como se faz a um gatinho. Depois, começou a cantar:
— Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O mundo é um lugar assustador para os que não têm coragem, mas hoje mostraste bravura. A tua coragem alia-se à minha e à da minha avó, que a herdou da avó dela.
A neta sentiu uma força percorrer o seu corpinho e as tremuras pararam.
Alguns dias depois, um beija-flor caiu de um ninho no jardim e partiu uma asa. Em vez de fugir, a neta assustadiça dirigiu-se à avezinha e pegou nela. O corpo do pássaro tremia ainda mais do que o seu. A menina sentia o coraçãozinho minúsculo e trémulo e a barriguita quente e penugenta. Pegou no beija-flor com a mesma ternura com que a avó pegara nela e levou-o para casa.
A avó sabia tomar conta de animais feridos. Fizeram juntas um pequeno ninho numa caixa, com tecido e palha, e alimentaram o pássaro com um conta-gotas. A menina deu de beber ao bichinho, gota a gota. À medida que o fazia, ia sentindo um entusiasmo percorrer o seu corpo.
A avó sorriu e o sorriso iluminou-lhe o olhar.
— Isto é que é um progresso!
Enquanto o beija-flor dormia, pegou na neta e cantou:
Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O mundo é um lugar assustador para os que não ajudam os outros. Hoje ajudaste uma criatura pequena e assustada e descobriste o teu dom de curar.
Durante toda a noite, a avó manteve a sua querida neta ao colo e continuou a cantar:
Este é o dom que te transmito, que é também o dom da minha avó, que o herdou da avó dela.
Certa tarde, a neta observava uma loja do mercado quando o comerciante acusou injustamente uma criança de ter roubado. A menina viu a cara irada do homem enquanto este apontava um dedo ameaçador ao menino. Embora com o coração a bater, aproximou-se do comerciante e disse:
— Este rapaz não roubou nada. Eu vi. Por favor, não grite com ele.
O comerciante grunhiu uma resposta e a rapariga perguntou:
— Quanto dinheiro perdeu?
— Dez cêntimos — respondeu o homem.
A menina remexeu no bolso e deu-lhe todo o dinheiro que tinha.
— Isto é que é progresso! — exclamou a avó, quando a neta lhe contou o sucedido, quase sem fôlego pela corrida até casa.
A avó pegou nela ao colo e afagou-a durante muito tempo.
Ouve bem, minha querida. O mundo é um lugar assustador para os que não têm dignidade. Hoje mostraste a tua. A ela junto a minha e a da minha avó, que a herdou da avó dela.
A neta sentiu um orgulho estranho invadir-lhe o corpo. Sentiu-se maior e mais forte.
◊◊◊◊◊◊
Quantas vezes mais a avó acariciou a neta? Quantas vezes mais cantou para ela? Não sei. Mas sei que o fez muitas e muitas vezes, durante muitas semanas e muitos anos. Através da sua ternura, incutiu na neta assustadiça confiança e coragem, destreza e dignidade. E as suas canções eram tão profundas que penetravam o coração, o sangue, e todo o corpo da menina.
A neta cresceu esperançada, digna de confiança, generosa e bondosa. Já ninguém se lembrava de que fugira em tempos de guaxinins. Tornou-se uma mulher forte, de gargalhada fácil, tirando prazer de tudo o que a rodeava.
E muito mais tarde, embora já tivesse filhos, ainda punha a cabeça no colo da avó de vez em quando. Conhecia bem a linguagem das mãos dela e sorria, de olhos fechados, enquanto a avó percorria o caminho familiar da ternura que sempre lhe mostrara.
Com o decorrer dos anos, a avó tornou-se velha e frágil. Chegou então a vez da neta tomar conta dela. De manhã bem cedo, vinha acender o lume e aquecer água para o chá. Cozinhava, lavava e penteava o cabelo prateado da velhinha. Massajava com carinho os pés cansados, dedo a dedo. Pegava nas mãos que tanto amava e massajava-lhe os dedos hirtos. Por vezes, embora mais raramente, caminhavam juntas pela aldeia, atravessavam o vale e iam até às montanhas, rindo e cantando juntas. Sempre que o piso era incerto, a neta oferecia o braço à avó.
Uma noite, a neta sonhou com a avó a subir sozinha a montanha. Queria juntar-se a ela, mas a avó virou-se e levantou a mão:
— Tenho de ir sozinha — dissera, com um sorriso tranquilo nos olhos.
No dia seguinte, como de costume, a neta foi a casa da avó. Mas, quanto tentou acordá-la, viu que o corpo estava frio e a face serena. De joelhos, fulminada pela dor, a neta sentiu o coração a esvoaçar e o estômago a tremer, como quando era criança.
Estremeceu dos pés à cabeça, como ramo de um cedro apanhado no meio de uma tempestade tremenda. Como poderia viver sem a sua avó adorada? O coração abriu-se como um rio e as lágrimas inundaram o seu rosto. Os soluços sacudiram-na toda. De repente, ouviu a voz da avó:
— Minha pequenina, ouve-me.
A neta sentiu umas mãos fortes e quentes a acariciar-lhe as costas. Eram mãos invisíveis, mais poderosas do que as mãos físicas da avó. Essas mãos abraçaram-na e embalaram-na, incutindo-lhe bem-estar por todo o corpo. Os soluços cessaram, tão depressa como tinham começado. Sentiu uma enorme leveza no coração e força nos membros. Pôs-se de pé, e afagou a face e a testa da querida avó morta.
◊◊◊◊◊◊
A neta já foi muitas vezes avó. E muitas vezes também já pegou ao colo nos netos. Embalou-os com os seus braços fortes e capazes, riu e chorou com eles, e cantou para eles, enquanto os acariciava.
Meus pequeninos, ouçam bem. O espírito da avó rodeia-nos. Está no vento e nas árvores. Está nos vales e nas colinas. As mãos do espírito da avó brincam com os peixes nos riachos e acendem o lume da lareira. Está sempre presente quando estamos com amigos calorosos, quando provamos comida deliciosa, e sempre que partilhamos sorrisos ou lágrimas. Onde quer que estejamos, a avó está sempre perto. E sempre que precisarmos dela, podemos fechar os olhos e sentir-nos no seu colo.
Barbara Soros; Jackie Morris
Grandmother’s Song
Bristol, Barefoot Books, 1998
(Tradução e adaptação)

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