Hoje, ainda não eram nove horas da manhã, ouvi uma locutora de televisão a dizer: bom resto de domingo!
Ora, para muitos, o domingo nem tinha ainda começado e já alguém estava a lembrar o seu final.
De facto, o tempo é veloz, mas nós ainda o empurramos mais. Se calhar, é por isso que corre tão depressa.
Lembrei-me, então, de ilustrar estas poucas e simples palavras com um poema sobre o tempo.
Como Manuel António Pina está muito presente por, por estes dias, ter precocemente partido, abri algumas das suas páginas de poesia.
Em busca do tempo (tantas vezes perdido!), apareceu-me também um poema sobre gatos (que, dizem, o escritor tanto acarinhava).
E eu que só uma vez tive um gato, ou melhor, uma gata que se chamava Pulguinhas e que desapareceu numa noite - não sei se de luar - pus-me a ler o poema e gostei muito.
Não sei se foi por se dizer que os gatos têm sete vidas e a nossa se reduzir a uma (pelo menos na Terra), se por ouvir histórias de gatos, contadas com tempo e com ternura, se pela capacidade de subirem aos parapeitos das janelas e ficarem perto de quem lhes quer bem ou por vê-los estendidos ao sol sem consciência de estarem ao sol e apenas porque é bom estar ao sol...
Bem, o melhor é lermos quem sabe/soube falar de gatos, porque o domingo está a correr. Porém, como ainda não são onze horas da manhã, o "resto do domingo" ainda demora. Ainda bem.
Sem que a vida deixe de ser efémera!
Uma prosa sobre meus gatos
Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem <<os meus gatos>>,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa.
31/01/99 Manuel António Pina
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