Estão ainda muito vivas as imagens de vandalismo em Londres. Diz quem sabe que o principal alvo eram as lojas de novas tecnologias. Diz quem viu que os autores eram jovens, muito jovens e que as redes sociais ajudaram à organização do saque.
Partilho hoje um texto que escrevi, há uns dois anos, depois de ter estado uns dias em Londres.
Na altura, foi publicado no blogue Terrear, de José Matias Alves.
Cheguei a Londres num fim de tarde cinzento de Sexta-Feira Santa. Quando entrámos em casa, abracei-te mais uma vez. Há dois meses que não nos víamos.
Reparei no vaso de flores matizadas que tinhas junto à janela da cozinha. Deitei um pouco de água no prato onde estava a planta. Para ir bebendo devagarinho.
Espreitei pela janela que ficava por cima do lava-loiça. Por onde quase entravam ramos de uma árvore alta, antiga, de flores alvas e esparsas.
E do alto do terceiro andar, avistei os pequenos quintais lá bem no fundo. Mais verdes do que tratados. Alguns com baloiços e bancos que o frio, a névoa e a chuva iam entalando entre a erva que o Inverno agigantara.
Na rua, os autocarros vermelhos subiam e desciam a toda a hora. E também os carros. E os táxis de toda a discrição e de todas as publicidades. E as ambulâncias. E os carros da polícia. E as motas. E as bicicletas que pareciam fios finos a riscar o pisado pavimento durante as poucas trevas do ruído.
Que bom passar uns dias contigo, disse-te eu. E tu sorriste.
Acrescentei que gostava de dar um passeio no parque de que às vezes falavas. Fomos. Nesse dia, percorrendo a rua arborizada, passámos por quarteirões com casas de telhados recortados à mesma altura. Muitas delas de tons ocre. Nos pequeninos jardins, estendiam-se abundantes flores pequeninas e de várias cores. Floriam baixinhas, frescas e formosas ao lado dos degraus que levavam à porta de madeira pintada de cores diversas: vermelhas, azuis, rosa, verdes... Em contraste harmonioso.
Passámos por um pub. Entrámos. Era hora do almoço. A um canto iluminado e sossegado, um homem alto lia um livro e bebia uma cerveja. Avermelhada. Escolhemos fish and chips. E também salada de rúcula. Verde. Com um fio de azeite dourado a que chamaste óleo. E que motivou o riso porque às vezes espreito as tuas palavras a ver se utilizas, sem contar, algumas expressões da língua inglesa. E ainda comemos tarte de maçã. De perfume quente e macio sabor. Ouvia-se jazz. Era Billy Hollyday em tom cúmplice. Lá fora, sob umas réstias de sol e ar frio bebiam-se pints entre gargalhadas estridentes.
Atravessámos, depois, o parque de relva cortada de vários tamanhos, consoante a função. E havia largos e ocos troncos de árvores que o tempo foi esburacando, enfraquecendo e tombando. Nem faltara a ventania. Diferentes arbustos orlavam caminhos desenhados para o uso de bicicletas. E de outros que as proibiam com inscrições pintadas no chão. Para que a corrida, a marcha, o passeio se fizesse de forma mais serena, livre e sem desnecessários desvios.
E assim caminhávamos parque fora. Falando do que víamos. Do que sentíamos. Do que sabíamos. Eu dizia que era bom que no nosso país houvesse mais espaços verdes, onde se pudesse serenar o corpo e fortalecer a alma.
Regressámos de metro. O centenário underground que fecha estações durante muitas noites e em frequentes fins de semana. Para obras de reparação. Sentámo-nos. Bem perto de nós, um grupo de homens negros de carne farta e firme voz falava de actores de filmes musicais. Uma inglesa de pele leitosa olhava, altiva e distante, o túnel que desaparecia veloz, rente e escuro. Ao lado, duas adolescentes partilhavam o i-pod sorrindo com gritinhos histrionicamente adolescentes. Uma delas tirava da carteirinha o blush, o lápis dos olhos e ía maquilhando o rosto da companheira, com gestos miudinhos para que o trabalho de embelezamento fosse eficaz. Saíram, depois de uma delas se ter visto ao espelho, tirado da mesma carteirinha. Onde também guardaram o i-pod.
Olhámo-nos e sorrimos.
Também perto, um jovem asiático lia, interessado, um jornal enquanto segurava uma mala de viagem entre os joelhos. Junto à janela, um par abraçava-se, procurando-se pela boca.
Quando regressámos a casa, subimos devagar as escadas forradas a alcatifa que amortecia o som dos nossos passos. Cheirava a torradas acabadas de fazer.
Tu tinhas uns trabalhos urgentes. Em breve, estavas ao computador com os teus dedos fininhos a clicar no teclado e os olhos nos gráficos que analisavas. E o teu sorriso abria-se claro e juvenil.
Peguei n’O livro de Cesário Verde que levara comigo. E reli:
«Eu tudo encontro alegremente exacto
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos,
e tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto».
Com O livro de Cesário Verde aberto, eu olhava a janela, donde se entrevia o céu cinzento, e, através dela, recordava a existência de muita coisa simples e bela
« E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela».
Após a Páscoa, na despedida, fechando a mala, reabri a habitual e comum cartilha maternal:
Filha, fecha bem a porta. Não te esqueças de comer sopa. Verde. Sempre.
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