quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

FELIZ ANO NOVO!

 

        Aurélia de Souza (Valparaíso, Chile, 1866 - Porto, 1922)



 

Recomeça…

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

(S. Martinho de Anta, Vila Real, 1907 - Coimbra, 1995)




quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Quem não a procura?

 

Postal enviado pelo Clube das Histórias

Júlio Rezende (Porto 1917 - Gondomar 2011)

 "Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela".

Adélia Prado
(Nasceu em Divinópolis, Brasil, em 1935)

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O menino da lágrima - 3

 

Lurdes Castro

 

"Para a minha mulher e para a minha filha

Deixo-vos esta carta porque preciso de vos dizer algumas coisas que me atormentam a alma há muito tempo.

 Maria, passas os teus dias calada a tratar da casa e do jardim, eu, a ver filmes. A Natércia anda mais triste desde a separação do Fernando. Às vezes penso que é infeliz nesta casa. Nunca trocamos sorrisos, nem falamos abertamente dos nossos problemas. Fazemos cerimónia uns com os outros e parece que temos medo de ser felizes ou fomo-nos convencendo de que só os outros têm esse direito. Parecemos o menino triste da lágrima. Como gostei de o ver coberto com as flores que a Natércia desenhou. Foi pena ter sido por tão pouco tempo.

Maria, foste a pessoa que mais amei em toda a minha vida. Sei que nem sempre fui o marido que desejavas. Tinhas razão em ter ciúmes, porque eu elogiava mulheres bonitas e a ti apontava-te defeitos.

 Natércia, quero dizer-te, talvez pela primeira e última vez: amo-te muito e tenho imenso orgulho em ti. Sei que já é demasiado tarde para mudar a nossa vida, mas não quero morrer sem te dizer isto que já te devia ter dito muitas vezes. Se o tivesse feito, de certeza que eras mais feliz e eu também o seria agora!

Ando a sentir-me pior e julgo que não passarei deste Natal. E olhem que não é conversa de velho. Quero escrever esta carta enquanto posso e vou guardá-la até ao dia em que sinta que é o último.

Amo-vos, querida mulher e querida filha.

Por que raio passamos uma vida juntos sem nunca dizer que gostamos uns dos outros?  E isso faz tanta falta.

Só quando pensamos que vamos morrer é que ganhamos coragem para dizer o que devíamos ter repetido ao longo da nossa vida.

Tentem ser mais felizes que, esteja onde eu estiver, também serei.

Beijos. Adeus.

José"

Natércia saltou a leitura do final da carta e foi a correr ao quarto dos pais. A mãe ainda dormia e o pai, aparentemente, estava já sem vida, o que foi confirmado pelo 112, minutos depois.

No dia a seguir ao Natal, despediram-se, tristemente, de José. 

Dezembro ia terminando ameno. Numa tarde de sol, mãe e filha sentaram-se num banquinho do jardim em conversa mais longa do que o usual.  Natércia desenhava flores numa cartolina para substituir o menino da lágrima do fundo do corredor, agora a pedido da mãe.

Nesse momento, passaram na rua as vizinhas com a loura criança ao colo. O brinquedo eletrónico tinha avariado e, numa das faces rosadas do menino, corria uma lágrima.

 Natércia e Maria sorriram-lhe, o menino acenou-lhes com a mãozinha papuda e, de repente, deixou de chorar. 

 

 Maria Dolores Garrido

 

 Este conto foi publicado em Lugares e Palavras do Natal, Editora Lugar da Palavra, 2020

 

Nota:

Talvez a história seja um pouco triste, mas espero que o final traga um pouco de alegria e de esperança.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O menino da lágrima - 2

 

Lurdes Castro

  Indiferente ao que acontecia à sua volta, a mãe de Natércia passava horas infinitas e silenciosas a tratar das plantas e o pai, nas arrastadas tardes,  a ver filmes do canal Hollywood.  Às vezes, era um velho que sonhava com histórias de amor; outras, o  menino triste da lágrima.                                                                                                                                                                   

O Natal aproximava-se. Como sempre, a ceia seria na cozinha só para os três. Na sala, ficariam as travessas com as rabanadas, o leite-creme e  a aletria. Enquanto durassem as iguarias, a janela não se abriria para não entrarem moscas nem olhares curiosos.

Até à véspera de Natal, tudo correu como de costume, incluindo o bacalhau a fumegar na travessa cavalinho, por entre as batatas e as couves. A sobremesa iria para a mesa nos pratinhos de porcelana, que já vinham do casamento de Maria e José.

Cearam quase em silêncio, ou melhor, a ouvir músicas natalícias pela rádio, porque as notícias da televisão não davam tréguas às desgraças.

Durante a refeição, Natércia ainda falou dos Natais da infância, em que punha o sapatinho perto do fogão para recolher as prendas trazidas pelo Menino Jesus, mas calou-se pouco depois.

A mãe sorriu apenas quando ouviu falar do Menino Jesus e o pai murmurou, com ar ainda mais cansado do que era habitual, enquanto tomava os medicamentos para o fraco coração:

- Outros tempos!

Se não fosse tão contida, Natércia diria que, em vez de um presente natalício no sapato, preferia carinhos, dias mais alegres, boas expectativas para o seu futuro... (E como tal ausência lhe dificultou também a vida no casamento! - pensou).

Nessa noite, recolheram-se cedo, como sempre acontecia no inverno.

De madrugada, o pai de Natércia levantou-se a custo e veio deixar, na mesa da cozinha, um envelope com uma carta que havia escrito dias antes. Depois, voltou a deitar-se, cada vez com mais dificuldade em andar e em respirar.

 Natércia levantou-se cedo. Queria preparar o farrapo velho, para não sobrecarregar a mãe, cuja idade ia pesando.

Vendo o envelope, logo o abriu, lendo vorazmente o que estava escrito:

 

Continua

domingo, 27 de dezembro de 2020

O menino da lágrima - 1

 

Lurdes Castro - nasceu na Madeira em 1930



Quando Natércia nasceu, a Revolução ainda demoraria quase duas décadas a libertar Abril.

A casa era térrea, as paredes rugosas e caiadas de branco,  entrecortadas por três janelas pequenas com caixilhos de madeira e folhos nas cortininhas. Duas janelas davam para a rua e da outra, lateral, via-se um portão ferrugento, por onde entrava e saía muita gente, quase sempre a falar muito alto e a chamar aos berros pelas crianças que andavam sempre na rua a correr.

A entrada na casa de Natércia fazia-se pelo portão estreito que dava para o pequeno jardim de margaridas, belas-donas, violetas...

Lajes toscas no chão levavam à porta com grade no postigo. À entrada, à esquerda, estava a cozinha; à direita, a sala de jantar.

Logo a seguir, o pequeno quarto de costura, com a velhinha Singer junto à janela e a caixa antiga das linhas, fitas, agulhas, elásticos, botões...

Apesar de escuro, deparava-se logo com o menino da lágrima ao fundo do corredor,  entre o quarto de Natércia e o dos pais. Neste, havia um crucifixo com um Cristo em sofrimento.

O espaço preferido de Natércia era o jardim pela abundância de luz, que fazia falta dentro de casa. Também gostava muito das flores. Um dia, desenhou algumas numa cartolina que ajustou ao quadro do menino da lágrima, tapando-o. A mãe, perante a perturbação do ritual da casa, arrancou a folha e, como a tudo dava serventia, aproveitou-a para forrar a cesta da cozinha, ajustando a parte pintada  de modo a não tingir as batatas, os alhos ou as cebolas.

 Embora habitada há tantos anos, a casa manteve-se quase inalterada, só os vizinhos é que eram outros. Em frente, instalou-se uma família de pele muito clara. As mulheres eram gordas e deslocavam-se devagar, quase sempre com uma criança ao colo a segurar um jogo eletrónico na mãozita papuda.

Continua

sábado, 26 de dezembro de 2020

'O verdadeiro'?

 

Postal enviado pelo Clube das Histórias

 Proposta de tradução:

O verdadeiro espírito de Natal

contém a verdadeira capacidade

de amenizar os corações, 

de fazer tombar as barreiras

de (se) reconciliar

e de construir

as pontes. 

 

Sam Beeson

 

Conversa com o Pai Natal dentro

 

Jóhannes Kjarval - pintor islandês 1885/1972


- Escrevi uma carta ao Pai Natal e ele deu-me o que eu pedi.

- Eu não escrevo, porque não há Pai Natal.

- Isso é que há. Todos os anos o Pai Natal vem a minha casa trazer-me um presente.

- São os teus pais que compram e dizem-te que é o Pai Natal.

- Eu sei que é o Pai Natal e que vem de noite quando estamos a dormir.

- Isso é uma mentira dos adultos.

- Os meus pais não me mentem.

- Se te dizem que há Pai Natal, estão a mentir-te.

- Tu é que não estás a dizer a verdade.

- Já viste alguma vez o Pai Natal?

- Não, mas deixámos biscoitos e leite para o Pai Natal e de manhã só havia  um bocadinho. Foi ele que veio e bebeu porque o meu pai ainda estava a dormir e a minha mãe não gosta de leite.

 


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

BOAS FESTAS!

 


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Feliz Natal!

 

Um presépio africano

 

Hoje recebi este excerto do último livro de Ondjaki (um dos 'Herdeiros de Saramago', série que está a passar na RTP 1, à segunda-feira à noite).

Obrigada, Idalina, pela partilha deste terno texto natalício. 



"[…] isso notava-se era nas casas daqueles que iam à missa:

o presépio com o camarada menino Jesus.

 

era na casa dos outros o natal, natal-mesmo; nós, nem árvore não tínhamos

isso foi já depois, anos depois

e se não falassem essa palavra eu nem sabia que já tinha chegado o tal de natal.

 

 

o que eu gostava mais?

o presépio da casa da tia Tó: simples, bonito de só ver e não tocar os cabritos de barro, uma casinha de madeira e o Jesus, deitado na palha, era um bonequinho de plástico com a pilinha de fora

- mas este menino Jesus fica assim com “os documentos” à mostra?

a avó Nhé olhava de desconfiar

- então ele já nasceu vestido, mãe?

a tia Tó me piscava o olho

- pelo menos um paninho a cobrir

 

agora, natal do puro panquê, de comer e beber até ficar a arrotar à toa?, era na casa do tio Chico, só que eu sempre só encontrava “as consequências”, como dizia o senhor Osório, os restos da noite anterior

porque na noite de vinte e quatro cada um ficava na sua casa e embora eu ficasse tantas vezes com o tio Chico, o jantar de natal era em casa com os meus pais, talvez no dia seguinte fôssemos então ao tio Chico

aquilo só faltava ter fila

todo o mundo parece que gostava de visitar as consequências do natal do tio Chico, para mim era bom porque ali tinha prenda garantida, para os mais-velhos era mesmo de comer e beber

a casa do tio Chico mandava muita comida naquele tempo"

 

Ondjaki, O Livro do Deslembramento, Caminho, 2020, pp. 67/68