domingo, 29 de dezembro de 2019

Conversa com/a propósito

- Então, tem projetos para o Ano Novo?
- Ainda não tive muito tempo para pensar nisso.
- Para já, quero melhorar uma prática.
- E qual é?
- Uma que é muitas vezes esquecida em consultas.
- Não estou a entender.
- Também por alguns professores, incluindo eu.
- Podia mandar palpites, mas nem sei.
- Por clientes em lojas e supermercados.
- Vá lá, vamos aos finalmentes.
- Olhe então para mim.
- Estou a olhar.
- Não acha que assim comunicamos melhor?
- Era só isso?
- Parece pouco mas os outros e o mundo passam a ser diferentes.
- Para melhor?
- Sobre isto não tenho dúvidas. Bom Ano Novo!



Conversa à beira do Ano Novo

- Bom dia? Tiveram bom Natal?
- Sim, já passou.
- Pois, passa rápido, não é?
- São uns dias de bastante trabalho.
- Mas também são marcos familiares e de amizades.
- Às vezes, é como as pessoas porem flores no cemitério só em datas marcadas.
- Vejo que não gosta muito de festejos de calendário.
- Acho que podiam estar mais repartidos durante o ano.
- É uma questão de começar. Sem stress. Por que não? E mostrar como os mais próximos são importantes.
- Se calhar. Bom Ano Novo!
- E não apenas as entradas!!!!



O saco de serapilheira


Este conto foi publicado este ano na coletânea 
Lugares e Palavras de Natal da Editora Lugar da Palavra.
A ideia surgiu-me quando ouvi contar que uma mãe, pelo Natal,
dava uma saco cheio de prendas ao filho, quando este era pequeno.



Como todos os anos acontecia, chegou o jantar de Natal da pequena mas empreendedora empresa, onde Ivo trabalhava. Vivia-se a descompressão de uns dias de folga, se bem que o trabalho fosse estimulante, reconhecendo a direção que havia sucesso graças à boa produção de todos os colaboradores. A mesa de pingue-pongue, onde saltavam as pequenas bolas nos intervalos da manhã e da tarde, também afastava o acumular de tensões e contribuía para gerar um ambiente de bem-estar e felicidade, sem descurar nunca o empenho e responsabilidade de todas as pessoas que trabalhavam na empresa.
Graças aos lucros, o diretor, com idade semelhante à dos colaboradores e de cabelos compridos, como alguns deles, ofereceu um I-phone a cada um no jantar de Natal como prova de reconhecimento pelo trabalho conjunto.
Felizes e motivados, à volta da mesa do jantar natalício, todos iam contando histórias que lhes vinham para a frente da memória. Uns faziam-no de forma mais contida, outros não poupavam as palavras. Um deles, segurando, orgulhoso, o novo equipamento recebido, começou a falar de alguns presentes, bem menos eletrónicos, que recebera em Natais da sua infância e os outros comensais logo lhe seguiram as pisadas. Uns confessavam que tinham acreditado no Pai Natal até tarde, outros diziam que bem cedo  consideravam o velhinho de barbas brancas apenas personagem de belas histórias inventadas que os ajudavam a adormecer e a sonhar.
Ao administrador, o Natal trazia-lhe a lembrança das velhas tias que, durante a semana do Natal, mantinham, na velha casa e em cima da velha mesa da cozinha, uma bandeja de vidro com uma garrafa de vinho do Porto antigo e finos cálices verdes só utilizados nessa época, ao lado de loiras rabanadas, polvilhadas de  açúcar e canela, para oferecer às visitas que chegassem. Para outro colaborador, o Natal da sua infância representava muita neve e poucas prendas, porque era passado com os pais na Suíça e os gastos tinham de ser reduzidos perante o desemprego iminente.
Ivo sentiu, então, vontade de contar a história que tinha vivido em vários Natais da sua infância em que  o mesmo saco de serapilheira havia estado presente:
Quando começava o mês de setembro, a mãe retomava o trabalho e ele regressava à escola. Por essa altura, a mãe dizia que, férias grandes terminadas, vinha o outono que logo chamava o inverno e com este cavalgava o Natal. Em segredo e longe dos olhares do seu menino, ela começava a reunir presentes para lhe oferecer na noite que para si era  a mais mágica do ano.
Às escondidas, para nunca quebrar a surpresa da noite de Natal, a mãe  punha o  saco grande de serapilheira no armário e nele ia depositando, paulatinamente, inúmeras prendas para o filho: carros, comboios, jogos... que via nas montras das lojas por onde passava, ainda sem quaisquer luzes ou sinais que anunciassem a época natalícia. Quase todas as semanas, consoante as suas possibilidades económicas, comprava um presente que, antes de chegar a casa, misturava com outras coisas para que Ivo nada descobrisse nem adivinhasse. Vendo-o distraído ou a dormir, abria o armário e colocava o novo brinquedo no saco de serapilheira de todos os anos, enquanto o seu coração abarrotava de esperança de ver o filho cheio de alegria a brincar  com todos aqueles presentes no Natal.
Assim, durante vários anos, chegada a noite da consoada, depois da ceia, ela afastava-se discretamente, vestia o fato de flanela encarnada, punha o velho saco de serapilheira com os presentes às costas, batia à porta para cumprir bem a função de Pai ou Mãe Natal e entrava com um oh! oh! oh! oh! magnânimo e folgazão, fazendo oscilar os óculos fininhos na pontinha do nariz, quase invadido pelas enormes barbas de branco algodão.
Logo a seguir, depositava suavemente o saco de serapilheira repleto de presentes no chão e Ivo abria-o perante os olhares atentos dos pais e dos avós. Estes chegaram a dizer uma vez que no seu tempo nem ao oito se chegava e que agora era mais do que oitenta, mas não voltaram a repetir estas ou palavras afins porque não gostavam de incomodar e os olhares que se seguiram não foram os mais amistosos.
Por isso, encher o mesmo saco de prendas foi-se repetindo ao longo de vários anos e Ivo, apesar de estar à espera do monte de presentes na noite de Natal, às vezes desatava a chorar porque, no meio de tantos brinquedos, não encontrava o carro que tinha visto num anúncio da televisão. A mãe ficava dececionada, achava que era ingratidão, mas em breve tudo esquecia e, no ano seguinte, repetia o ritual.
Porém, num outono, faltando ainda bastante tempo para o Natal, a mãe, por descuido, deixou ficar a chave na porta do armário, Ivo abriu-a e o saco de serapilheira logo desabou a seus pés, de tanto peso. De repente, muitos brinquedos ficaram espalhados pelo chão, porque o saco, nessa altura, já estava quase cheio. Curioso, Ivo  sentou-se no chão, sem saber o que escolher. A mãe, que logo surgiu muito aflita, só se lembrou de dizer que o Pai Natal lhe tinha pedido para guardar aqueles presentes. Nesse momento, Ivo olhou a mãe, dizendo, com indiferença, que não gostava de nenhum deles e que, quando  o Pai Natal viesse, os podia levar todos.
Agora, no jantar da empresa, passados mais de vinte anos, Ivo recordava-se que fora a primeira vez que tinha visto o rosto da mãe tão desalentado e a última que aquele saco de serapilheira se enchera de brinquedos  que não chegaram a ser-lhe entregues nesse Natal. Só muito mais tarde veio a saber que a mãe os tinha oferecido a uma instituição, trazendo, no entanto, o saco de serapilheira de volta.
Contada a história, Ivo acrescentou que precisava de telefonar à mãe depois do jantar da empresa. Sabia que ela ainda guardava o velhinho saco de serapilheira. Como este ano ia ser o Pai Natal no infantário do filho,  daria jeito para pôr os presentes que seriam oferecidos às crianças.
O gestor da empresa, com um sorriso descontraído no meio da barba abundante, e Ivo, com um olhar que ainda não tinha descolado dessas memórias do passado, encerraram assim a história do saco de serapilheira:
- A tua mãe merece um bom presente.
- Claro que sim. De certeza que se privava de muitas coisas e eu nem dava valor!
- Não é só por isso.
- Então? É pela quantidade de brinquedos que a minha mãe juntava para me dar no Natal?
-Também não é só por essa razão. Não a conheço, mas de certeza que se fosse agora não acumulava tanta coisa  para te dar de uma só vez porque as mentalidades mudaram.
 - Queres explicar melhor?
- Apesar do excesso de presentes, acho fantástico a tua mãe ter usado sempre o mesmo saco de serapilheira.
- Sim, já tinha pensado nisso.
- E, melhor ainda, sem nunca o trocar pelo plástico!



Vou ler para depois contar


A Clarinha, como todas as crianças, gosta de ouvir e também de contar histórias.
Neste período do Natal, quero ler-lhe algumas. E talvez inventar outras. Eu digo inventar, mas há palavras e situações que dão logo uma história bonita.
Feliz Natal com boas histórias!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Estrelas natalícias vindas de Maputo!


Obrigada, Irmã Alice, e parabéns pela Missão de ajudar tantas crianças a serem mais felizes! 
Feliz Natal e Bom Ano Novo!

domingo, 15 de dezembro de 2019

Palavras improváveis num dia de chuva como o de hoje!


Presente

A música do jardim
vem das magnólias
e dos teus olhos.

Os nossos passos
afligem a terra
poeirenta.

Gaivotas saltam do rio
procurando lugares
onde nos sentamos
e que também ao céu
pertencem.

Ervas vivem deitadas
de tão percorridas
pelo amor que nelas pousa
ou que delas foge.

Abraça-me ao sol
da nossa alegria
sem passado.

Apenas o presente
do teu rosto
ao sol
ouvindo os sons do jardim
e do rio
que  não perturbam o já silêncio
das magnólias
nem o ainda calor das nossas mãos.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

'EXPRESSO curto' mas certeiro!

“Os homens preferem geralmente o engano, que os tranquiliza, à incerteza, que os incomoda”
Marquês de Maricá 

Esta citação vem a propósito das eleições de hoje no Reino Unido. Quem sairá vencedor? Dizem as sondagens que o atual primeiro ministro é pouco confiável porque, 'apesar de culto, é um farsante'.
No entanto, prevê-se que nele votem sobretudo os maiores de 65 anos e as pessoas que habitam longe das grandes cidades, o que pode ser o bastante para uma vitória.

O que se passa no mundo para que governantes pouco fiáveis saiam vencedores em eleições democráticas?
A máxima que inicia o  Expresso Curto de hoje dá  uma das possíveis respostas.

sábado, 7 de dezembro de 2019

Conversa sobre um banco improvável ou talvez não!

- Que achas pôr aqui um banco?
- Acho bem e o sítio é bom.
- Dás crédito, então, à minha ideia?
- Claro! E será um banco com valor bem parado.
- Bem descansado, diria eu.
- Vou ver se arranjo, então, um banquinho engraçado para o Pai Natal.
- Como não acendemos a lareira, pode ficar lá dentro.
- Um banquinho para o Pai Natal descansar um pouco.
- A Clarinha vai adorar.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Não roubemos as cores à Natureza!

Obrigada, amigos, por partilharem estas e outras fotos 
em que a Natureza chama! 
Precisa bem de ser acarinhada!


terça-feira, 3 de dezembro de 2019

'Eu queria ser Pai Natal'

Eu queria ser Pai Natal
e ter um carro com renas
para pousar nos telhados
mesmo ao pé das antenas.

Descia com o meu saco
ao longo da chaminé,
carregado de brinquedos
e roupas, pé ante pé.

Em cada casa trocava
um sonho por um presente.
Que profissão mais bonita
Fazer a gente contente.
Luísa Ducla Soares
Poemas da Mentira e da Verdade
Lisboa, Livros Horizonte, 1999



domingo, 1 de dezembro de 2019

Conversa sem fantasias

- Mãe, sabes que a Clarinha acredita no Pai Natal.
- Que bom. Quando eu tinha quatro anos também acreditava que as prendas eram trazidas pelo Menino Jesus.
- No Natal, a Clarinha vai pôr um sapatinho na chaminé e, quando acordar, vai ver o presente do Pai Natal.
- Que bonito. Vai ficar tão feliz. Quero ver a reação dela.
- Mas não lhe podes dizer a verdade nem te podes rir.
- Achas?
- Acho.
- Também acho que não tenho uma doença rara nas avós que é serem desmancha-fantasias!



Como seria bom haver 'universal consoada'!

 

Natal, e não Dezembro

 Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal'

sábado, 30 de novembro de 2019

Conversa em rede

- Fico angustiada ao ver casas já decoradas com a árvore de Natal.
- Não fiques. Dezembro só começa amanhã.
- O pior são as dezenas e dezenas de testes para corrigir.
- Pensa no momento da entrega e na libertação.
- Logo a seguir vêm mais trabalhos e parece que nunca há libertação.
- Existe, sim, ainda que breve, e enquanto dura...



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Ainda há tantas 'Luísas'!

Calçada de Carriche
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão - Poesias Completas (1956-1967)

domingo, 24 de novembro de 2019

Apesar de todas as inquietações, tenham(os) um domingo sereno!


Obrigada, IA, por este post e por tantos e tão bons do teu blogue
 'Bem-Vindos ao Paraíso'!

sábado, 23 de novembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Turbulência(s)


Há tempos, uma amiga ofereceu-me este livro. Como é gentil, disse-me que, quando o viu, se lembrou de mim porque às vezes conto pequenas peripécias das minhas idas a Londres, incluindo nos aviões.
De facto, a turbulência continua a assustar-me e, como se aproximava nova viagem a Londres, só agora o li. E gostei. E pude verificar que nem só de turbulência de avião se trata.
Quando comecei a ler Turbulência, de 117 páginas e dividido em doze curtos capítulos, logo me pareceu ser de um autor jovem. A escrita é seca, descarnada, embora as tensões e sentimentos humanos estejam bem presentes.
As personagens deslocam-se de avião ou por motivos familiares, ou profissionais, ou amorosos..., havendo turbulências várias na hora da partida, de chegada ou quando se vivem os momentos esperados aos quais se juntam boas e más surpresas.
As viagens acontecem entre diferentes continentes.
A narrativa começa e termina em Londres. São estas as poéticas palavras do fim:
'Caminharam até à paragem de autocarro de Westbourne Grove. As nuvens moviam-se no céu, o sol ia e vinha e, quando chegaram à esquina, o vento espalhou as flores de todas as árvores da rua'.


David Szalay nasceu em 1974 no Canadá, vive na Grã-Bretanha, frequentou a Universidade de Oxford, está traduzido em 15 países e em 2018 foi finalista do Man Booker Prize.

Pode haver momentos felizes como estes?

Como habitualmente, levantei-me cedo e, também como é habitual, fiz e tomei o pequeno almoço. Tinha pão fatiado, compota feita por mim e pude saborear tudo devagar, enquanto ouvia as notícias.
E senti que o momento era feliz. E eu também. Para mais, está previsto sol a brilhar durante todo o dia.
Mas logo vieram algumas questões: 
O que valem estes pequenos momentos de prazer perante tempos intermináveis de contestação e violência como em Hong Kong, em Paris, em diferentes países da América do sul...
... perante incontáveis mentiras de poderosos governantes cujo ego é tão grande que lhes retira o respeito pela Humanidade?
O que vale o prazer de um pequeno almoço de café com leite, pão escuro com compota caseira se tantos confrontos se repetem e tantas dúvidas ficam por explicar?
Que bom seria que não fossem habituais.





quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A senhora do supermercado

De todas as vezes que fui ao supermercado, perto do centro de Londres, vi a mesma funcionária, de uns cinquenta anos, muito branca e de cabelo pintado de loiro.
Ela sempre me chamou a atenção por estar sempre a comunicar com os colegas ou com os clientes. A voz dela ouve-se bem e também os sorrisos e gargalhadas, mas sem nunca parar a tarefa que está a executar.
Se ela fosse mais nova, eu diria que começara há pouco a trabalhar, mas, pelo relacionamento com todos, vê-se que já lá está há muito.
Um dia em que esteja silenciosa, não faltará quem lhe pergunte se está doente. Se não estiver, será mais um motivo para desatar a rir.




terça-feira, 12 de novembro de 2019

A folha no lixo

A menina sentou-se à mesa.
Junto à janela, estavam três sacos com resíduos para reciclar.
Por cima do que que estava mais cheio, jazia uma folha de árvore de tons outonais.
Vendo-a, a menina disse pesarosa:
- Oh! A minha folha está no lixo.
- Deve ter sido a empregada, responderam-lhe.
A menina continuou, pensativa, a jantar e perguntou:
- Se a minha folha for para reciclar, dá outros presentes para a mãe?



sábado, 9 de novembro de 2019

Travessia da infância

Travessia da infância
Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo

não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias

só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo

mas isso foi depois
muito depois
repito

José Tolentino de Mendonça

Felizmente caiu o muro de Berlim

Quando eu era era criança, havia duas famílias que partilhavam um quintal há vários anos, embora cada família vivesse na sua própria casa. Uma das casas possuía um poço que servia as duas famílias porque o tempo ainda não era de água canalizada.
Um dia, dois homens chegaram com tijolos e começaram a levantar um muro, sem que as duas famílias tivessem dialogado sobre o assunto.
A família dona do poço pensava que tinha direito à sua privacidade.
A família que se habituara a atravessar o quintal para ir buscar água passou a ter de fazer um percurso maior.
O que era harmonia entre as duas famílias passou a ser ressentimento.

Há tantos muros. Uns pequenos como o da aldeia da minha infância; outros grandes a separar países ou povos, ficando sempre um poço de água do outro lado que é necessária para todos viverem melhor.
Em muitos casos, os muros impedem qualquer travessia ou alteração de percurso.

Felizmente o muro de Berlim caiu há trinta anos.
Oxalá caiam outros e outros não cheguem a erguer-se.
Será ainda possível? 

A Estrada Branca


Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

José Tolentino Mendonça, in 'A Estrada Branca'

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

O jardim e a casa


 
Joaquín Sorolla

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.


Sophia de Mello Breyner Andresen | "Poesia", 1944

Sem palavras

Ainda bem que me trouxe estes biscoitos de que gosto tanto. Gosto mais deles fresquinhos e estaladiços, mas não digo nada senão deixa de trazer ou, o que é ainda pior, deixa de vir visitar-me. Não gosto de estar aqui. Não me habituo, embora não me queixe muito. A televisão está sempre muito alto. Mas estão a saber-me bem os biscoitos. Em casa, costumava pô-los num frasco de vidro que punha sempre em cima da mesa da cozinha ao lado da garrafa de termos com chá quente.

Não para de comer os biscoitos. Nem levanta os olhos. Não deve estar a pensar em nada, apenas nos biscoitos que está a comer. Ainda bem que os tinha lá em casa. É curioso que ainda os guardo no mesmo frasco de vidro. Enquanto come, posso responder a estas mensagens e a alguns e-mails em atraso.  Agora, quando venho cá, fala pouco. Talvez por isso, apetece-me vir cá cada vez menos.

Já perguntei por todos lá de casa e gostava de saber notícias de algumas vizinhas, mas fica já de mau humor e diz que tem mais que fazer do que saber da vida dos outros. Também não vale a pena perguntar sobre o trabalho. Diz logo que está tudo bem e não desenvolve. Sei que estão a reparar em mim, porque pareço esfomeada, mas é como se estivesse à minha mesa a comer biscoitos e a tomar chá. Gostava muito do frasco de vidro onde guardava os biscoitos. Lavava-o muitas vezes para estar sempre limpinho e brilhante.

Bem, os biscoitos já estão quase no fim. Vou responder à última mensagem e vou para casa. Estou cansado. O dia não foi fácil. Raisparta o meu chefe que se arma em sherife. Vou pirar-me logo que possa. Preciso de apanhar ar e deixar de ouvir estes malditos berros da televisão.

Já foi embora. Fechei os olhos e deve ter pensado que eu estava a dormir. Também deve andar cansado. Até compreendo. E ainda falta bastante tempo para o jantar. Deve ser peixe porque já cheira.
Podia-lhe ter dito para levar o restinho dos biscoitos para comer pelo caminho. Como quando lhe dava a saquinha com o lanche da escola.



terça-feira, 5 de novembro de 2019

'O meu maior desgosto'

Segurando o pequeno postal bonito que foi lido sobre o outono nas mãos brancas e quietas de doente há muito no hospital, ela perguntou a quem lho deu:
- Posso pôr na minha mesinha de cabeceira?
Em resposta, teve um sorriso e palavras:
- Claro que pode. Que bom ter gostado.
De repente, os seus olhos enchem-se de lágrimas e diz com voz de menina, apesar dos seus noventa anos:
- Só tenho pena de não saber ler. É o meu maior desgosto.



segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Escorregar, escorreganço e escorrega

Li numa revista de um avião um belo texto de Gonçalo M. Tavares e guardei esta frase:

'A viagem? Uma forma intencional de escorregar para outro sítio. Um escorreganço controlado'.

Recordei, então, a pergunta que ouvi de um menino, num outro avião:
- Pai, vamos sair pelo escorrega?



sábado, 2 de novembro de 2019

Conversa com sotaque brasileiro numa fila de museu

  • Vald(j)i, não imagina a beleza de fotos que tirei.
  • Imagino, Rose.
  • Imagina não, tem que ver. 
  • Verei, então, Rose.  
  • Nossa, Geraldo está dizendo que está vindo pra cá de omnibus.
  • Que bom!
  • Valdi, eles assim poupam bom dinheiro.
  • Bom exemplo, sim senhora.
  • Você é muito acomodado, Valdi, é filho de pobre com espírito de rico, Valdi.
  • Pois serei, Rose!
  • Eu bem  gostava, Valdi, de andar de omnibus e metro em vez de uber ou táxi. 
  •  E podemos andar, claro que sim.
  • Valdi, vou tirar fotos aos pássaros do jardim. Já viu como são lindos?
  • Eu fico na fila.
  • Claro, Valdi, você tem que ficar!
  • Então, os pássaros não fugiram?
  • De jeito nenhum, Valdi. Finalmente, vamos comprar o bilhete, Valdi.
  • Vou usar cartão.
  • Não, Valdi, usa dólar!
  • Uso não, seria mais demorado e complicado.
  • Valdi, compra meu bilhete com guia.
  • Não, Rose, não é preciso.
  • Eu quero, Valdi.
  • É muito mais caro e não há necessidade.
  • Mas eu quero, Valdi, então eu pago, Valdi.
  • Você, Rose, também é filha de pobre com espírito de rica!!!

domingo, 27 de outubro de 2019

Conversa perto de livros e de pôr do sol

- Então, já escreveste o teu conto de Natal?
- Tenho tanta coisa escrita, mas não tem interesse para os outros. Fica para os meus filhos.
- Muita gente pensa assim mas nem sempre assim acontece.
- Eu gosto de falar de pequenas coisas como as pedrinhas que vejo na praia.
- Olha que há muita gente que gosta também de olhar as pedrinhas da praia ou pode até começar a reparar nelas.
-  Não sei. Acho que ainda sei pouco.
-  Todos sabemos tão pouco. Partilhar algumas coisas que escrevemos pode ser um modo simples de aprendermos todos um pouco mais.



Diferentes mimos de outubro


Ontem, foi apresentada no Porto (julgo que) a quarta coletânea de textos poéticos dedicados aos diferentes meses do ano, com o título de Mimos de... das Edições Mimos e Livros.

Desta vez, foram Mimos de outubro


Também lá vem um texto meu. Para o escrever, pensei em outubro e partilho as palavras que me surgiram:


ANTES
      E
      DEPOIS

Esperada liberdade de horários
     Sofreguidão trabalhosa das horas

Dias longos abertos ao esplendor
     Noite apressada pela pequenez do dia

Uvas maduras a escorrer nas mãos ceifeiras
     Bagos perdidos nas folhas ressequidas

Poentes avermelhados nos mares dos horizontes
     Nuvens cinzentas de lágrimas prestes a cair

Afã fremente de formiga
colhendo frutos maduros
Canto livre de cigarra
com tempo de cantar
     mas sem tempo para qualquer depois

Sê bem-vindo, outubro!
Trazes contigo as eiras de milho ao sol da minha infância.