—  Já lavaste as mãos?
—  Lavaste as mãos antes de começar a comer?
—  Lavaste as mãos quando vieste da escola?
—  E não te esqueças de usar o sabonete!
Quantas  vezes não ouvimos as nossas mães repetirem estas frases vezes sem conta?  
Chegámos
  até a odiar o sabonete, que nos atrasava para o lanche, com aquele 
bolo de que  tanto gostávamos, ou nos fazia perder tempo quando, 
ansiosos, só queríamos pegar  no pão e começar a ler o livro que 
tínhamos trazido da biblioteca ou que um  colega nos emprestara. Ou que 
nos picava nos olhos quando a mãe, zangada por não  lavarmos a cara, 
no-la segurava com firmeza e, com gestos decididos, nos  esfregava a 
cara, as orelhas, e o pescoço com o sabonete e a toalha  molhada.
Mais
  tarde, era o cheiro do sabonete que nos fazia lembrar os ralhos da 
mãe, o lanche  engolido à pressa nas tardes solarengas para não 
interromper demasiado tempo do  jogo de futebol com os amigos. Para não 
falar no cheiro da mãe, da avó, da tia  que nos visitava sempre pela 
Páscoa. E o cheiro a lavado, depois do banho? E  quem não se lembra dos 
que eram guardados nas gavetas e que perfumavam os  lençóis e a roupa 
interior? 
O
  sabonete, odiado e amado, entrou de tal forma no nosso quotidiano que 
passou a  banal, e do qual quase nem nos apercebemos. O ato de lavar as 
mãos está  automatizado: abrir a torneira, molhar o sabonete, esfregar, 
secar. Já nem  sabemos porque lavamos as mãos.
Mas…
  será assim em todo o mundo? Infelizmente, não é. Nos países menos 
desenvolvidos,  o sabonete é um bem de luxo e o ato de lavar as mãos, 
que pode salvar tantas  vidas, principalmente de crianças, não está ao 
alcance de todos.  
O
  ato de lavar as mãos, que até teve direito a dia mundial, 15 de 
Outubro, pode  salvar a vida de milhares de crianças e adultos. Em 
países menos desenvolvidos  de África, Ásia e América Latina, onde nem 
toda a gente tem acesso a sabão, a  taxa de mortalidade por diarreia, 
febre tifoide, cólera, infeções respiratórias  é elevadíssima. Em 
situações de catástrofes naturais ou em campos de refugiados,  onde as 
condições de higiene são deficientes, as condições para a propagação de 
 vírus aumenta perigosamente. Inacreditavelmente, a lavagem das mãos 
antes da  preparação e ingestão de alimentos, após o uso dos sanitários,
 e, muito  importante, durante o parto, reduz significativamente a taxa 
de mortalidade e a  
 propagação dos vírus.
Que
  o diga Derreck Kayongo, que, pela janela do jipe, vai olhando a 
paisagem do  Quénia que desliza à sua volta. Nascido no Uganda e com uma
 infância agitada, é  com emoção que acompanha pessoalmente a entrega de
 uma carga peculiar. O seu e  os jipes que o seguem estão carregados com
 cinco mil barras de sabonete que irão  ser entregues em diversos 
orfanatos e organizações não-governamentais que  trabalham com 
refugiados. Sabonete que provavelmente vai salvar da morte  centenas de 
pessoas. 
Derreck
  mal pode esperar pela primeira paragem. A cabeça começa a encher-se de
  recordações da infância e os olhos de lágrimas. Uma vida e uma 
infância estável  no Uganda abruptamente interrompida pela tomada de 
poder do ditador Idi Amim e o  começo da guerra com a Tanzânia, que 
obrigou a família a refugiar-se no Quénia  durante alguns anos. Primeiro
 a mãe e as irmãs e, cerca de um ano mais tarde, o  resto da família 
abandona a casa e o país. Foi o início de uma vida difícil. Um  novo 
país, novos costumes, uma nova língua. Derreck, que até ali só conhecia 
as  preocupações típicas de uma criança saudável, deparou-se 
repentinamente com uma  realidade assustadora: a de milhares de pessoas 
que não têm nada, des
 de casa,  comida, sabão para tomar banho. A sua família era mais uma 
das centenas de  refugiados. 
Nestas
  circunstâncias, as condições de higiene têm um papel fundamental. 
Dadas as  condições de vida, a má nutrição e a falta de higiene, as 
epidemias e as doenças  propagam-se facilmente e a morte é inevitável. 
Conscientes disso, cada sabonete  recebido pela família era 
religiosamente guardado após ser utilizado.  
Derreck  não esquece a tristeza que sentiu quando soube que o seu amigo Balondemu
  tinha morrido. Na sua cabeça ressoam as lágrimas silenciosas das mães 
que viam  os filhos morrer de cólera ou febre tifoide. A mãe dele 
obrigava os filhos a  lavar as mãos com frequência, mas nem todas as 
pessoas podiam fazê-lo e nem  todas sabiam que aquele gesto podia 
salvá-las. Aluno aplicado, teve a sorte de  ter acesso à escolaridade. 
Quando terminou a universidade no Quénia partiu para  os Estados Unidos 
da América, onde a primeira noite contribuiu decididamente  para 
fortalecer a sua vontade de ajudar a lutar contra
  a  pobreza.
No
  quarto do hotel deparou com três sabonetes: um para a cara, outro para
 as mãos,  e um último para o corpo. Perplexo, Derreck desembrulhou o 
primeiro e cheirou-o.  Resolveu guardar os outros na bagagem. No dia 
seguinte, ao voltar ao quarto,  encontrou mais três sabonetes, que 
rapidamente se juntaram aos que estavam na  mala. E assim 
sucessivamente. Ao fim de alguns dias, com a consciência pesada,  desceu
 à receção.
—  Venho devolver os sabonetes. Lamento, mas não tenho dinheiro para os  pagar.
—
  Não se preocupe — tranquilizou-o o rececionista. — Todos os hóspedes 
têm direito  a três sabonetes por dia. E podem levá-los para casa. 
Aliás, é o que muitos  fazem.
Derreck  não podia crer no que estava a ouvir. 
—  E… o que fazem aos que sobram? — perguntou atónito.
—  Por razões de higiene vão para o lixo.
Ficou  perplexo. Como era possível deitar fora uma preciosidade daquelas?  
De
  volta ao quarto, pegou num pequeno sabonete e ficou a pensar nas duas 
realidades  tão distintas que acabava de confrontar: no Uganda, onde 
havia um sabonete por  casa, e que era usado por todos, até pelas 
visitas. Isso, quando havia  possibilidades financeiras para o comprar. 
Num país onde os salários são tão  baixos, o preço do sabonete era 
elevado e, comprá-lo, um luxo, que podia muito  bem ser adiado. E ali 
estava ele num país onde havia mais do que um sabonete por  pessoa, até 
para as diferentes partes do corpo, que ia para o lixo no dia  seguinte.
 Os números começaram a galopar na sua cabeça. Quantos sabonetes eram  
desperdiçados ao fim do dia? Só naquele hotel? E em todos os hotéis dos 
EUA… da  Europa… do mundo?
Lembrou-se
  de todas as crianças que conheceu enquanto viveu no Quénia e de muitas
 outras  que viviam nas mesmas condições e cujas vidas podiam ser salvas
 se tivessem um  sabonete na mão. Aquele resto de sabonete. De repente, 
uma cadeia de palavras  apareceu-lhe em mente: 
Hotel-sabonete-higiene-refugiados. Telefonou ao pai para  lhe contar o 
que acabara de acontecer. E foi com a ajuda deste que começou o seu  
projeto Global Soap Project, iniciado  anos mais tarde, em 2009, e que o levava agora naquela viagem de regresso ao  Quénia.
A
  ideia de Derreck fora reutilizar os restos de sabonetes que só são 
usado uma  vez, e simplesmente derretê-los, esterilizá-los, convertê-los
 numa nova barra e  fazê-los chegar às populações necessitadas – sem 
custos para estas.  
Começou
  por apresentar a sua ideia aos hotéis, o que levou meses. Foram raras 
as  recusas. Usando os conhecimentos do pai, que trabalhou numa fábrica 
de sabão no  Uganda, começou por fazer este trabalho na cave da sua 
casa, em Atlanta. Comprou  uma pequena máquina de fazer sabão, e com a 
ajuda da família, depois de  separados por proveniência, os sabonetes 
eram lavados para retirar as impurezas,  derretidos e transformados em 
novas barras.
Pouco
  a pouco, o projeto foi crescendo e ganhando dimensão. A cave tornou-se
 demasiado  pequena para tanto trabalho. E o número de doadores e de 
voluntários foi também  aumentando. 
Derreck
  consegue fazer chegar os seus sabonetes onde eles são precisos, 
contactando  diretamente as instituições no terreno; da Ásia à América 
Latina, passando por  África, já distribuiu mais de cem mil sabonetes em
 mais de dez países. Quando  saiu o primeiro carregamento para o Quénia,
 Derreck fez questão de acompanhá-lo  pessoalmente. Quer ser ele a 
entregar os sabonetes às crianças que vivem como  ele viveu. 
—  Derreck, estamos quase a chegar.
O  motorista arranca-o das suas recordações. 
—  Preparado?
Derreck
  há muito que sonha com este momento mas nunca conseguiu preparar-se 
realmente. A  emoção de voltar àquele país que o acolheu durante a 
guerra, de ver as crianças  sorridentes que os esperam e de saber que 
vão beneficiar com aquela carga, fez  com que chorasse o caminho todo. 
E
  ali estava ele, a distribuir sabonetes; a distribuir vida e esperança 
àquelas  crianças que agradecem com um sorriso radiante, assim que 
desenterram o nariz da  barra branca de sabonete que lhes foi depositada
 nas mãos. Depois pedem-lhe que  lhes conte a história dos sabonetes. Já
 a contou milhares de vezes mas nunca se  cansa. Ele, que foi uma 
daquelas crianças, teve uma ideia e concretizou-a.  Graças ao seu 
passado, que não quis esquecer, e à sua determinação.  
Por
  vezes, são as coisas mais simples, aquelas a que raramente damos 
valor, que  podem fazer a diferença. Como no caso de um banal sabonete 
usado que ia para o  lixo.
I.  Birnbaum
A partir de:  http://www.globalsoap.org
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Gostei muito deste texto.
ResponderEliminarum beijinho
Gábi