sábado, 20 de junho de 2015

quinta-feira, 18 de junho de 2015

A cor da casa



A casa era grande e toda coberta de azulejos azuis. Não me lembro dos desenhos, mas a cor azul continua na minha memória. 
A casa tinha muitas janelas e um portão muito alto. Se o portão estava aberto, as crianças paravam as correrias para olhar os dentros da moradia. E diziam que lindo chafariz. E imaginavam-se a tomar banho no pequeno lago ou a fugir de uma rã mais atrevida.

Mas isto acontecia poucas vezes, porque a casa estava quase sempre fechada, apesar de também lá morarem crianças.
          A cor azul da casa teve a duração da nossa infância. E também juventude. E de uma grande parte da idade adulta em que há o afastamento natural de muitos lugares que a azáfama diária vai trancando ou prometendo para uma visita mais tarde.
Um dia, a casa deixou de ser azul. Veio um grupo de trabalhadores, ergueram-se andaimes, ouviram-se muitas e longas marteladas de manhã até à noite, durante muitos dias. Depois das obras, o sol começou a bater diretamente na pedra que estava por trás dos azulejos que passaram a  cacos que uma carrinha ia  transportando para tudo ficar limpo e organizado.

E assim o azul dos azulejos desapareceu. Como as crianças que há muitos muitos anos lá brincavam por perto.

Mudando os habitantes da casa, o portão manteve-se fechado a maior parte dos dias e das noites.
 As paredes, outrora azuis, têm agora a pedra a descoberto. Bela, por certo, mas dificilmente a vejo, porque, quando lá passo, a casa mantém-se azul, tal como a via na minha infância.

sábado, 13 de junho de 2015

No dia de aniversário de Fernando Pessoa

Amadeo Souza Cardoso

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... 



Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa  (13 de junho 1888/30 de novembro 1935)


Flores - sempre



quarta-feira, 10 de junho de 2015

ERRARE...

Nos últimos tempos, tenho confirmado a tese de que há pessoas que, naturalmente, fazem com que os outros reconheçam e desenvolvam o que de melhor têm em si, enquanto outras parecem puxar apenas pelo que de pior existe em alguns interlocutores.
Claro que eu gostava de fazer parte do primeiro grupo, mas nisto, como noutras coisas, não basta querer, embora a vontade de evoluir humanamente conte muito.
Pensemos em alguém que se aproxima de outrem para fazer críticas ou reparos de forma sistemática. Nestes casos, pensa-se logo: o que fiz de mal? E não: vale a pena fazer melhor.
Vivemos numa sociedade hedonista e de crescente desculpabilização, prática que se vai enraizando em muitos jovens. Se erros existem, estes assentam nos outros, anulando, muitas vezes, o que de bom e útil foi feito.
Quando assim é, o lado lunar toma conta da claridade a que todos ambicionam. Andamos todos, talvez, a precisar de maior reconhecimento. E este vem também da crença no seu próprio desempenho e no dos outros, não pendurando sempre a dúvida no elo mais fraco.
De facto, em qualquer idade, é fundamental o sorriso de reconhecimento e não apenas o apontar do dedo às imperfeições, o que escurece ou cala tantas vezes o que de melhor existe em cada ser humano.
E como falo de erros, e hoje é dia de Camões, lembrei-me do soneto  "Erros meus". Não esquecerei nunca a aula do 10º ano de há anos em que uma aluna - a Elza - recitou este poema. A turma ficou em completo silêncio, ouvindo, talvez, o que de melhor existia em cada um daqueles rapazes e raparigas. E da professora.

 

Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

 

terça-feira, 9 de junho de 2015

Fora dos discursos de circunstância do dia 10 de junho

CAMÓES, GRANDE CAMÕES, QUÃO SEMELHANTE...

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante;


Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.


Ludibrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.


Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.


BOCAGE, in 'Rimas'



CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
As ideias, as palavras, as imagens,
E também as metáforas, os temas, os motivos,
Os símbolos, e a primazia
Nas dores sofridas de uma língua nova,
No entendimento de outros, na coragem
De combater, julgar, de penetrar
Em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
Outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
Será terrível. Não só quando
Vossos netos não souberem já quem sois
Terão de me saber melhor ainda
Do que fingis que não sabeis,
Como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
Reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
Tido por meu, contado como meu,
Até mesmo aquele pouco e miserável
Que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu, E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

JORGE DE SENA - Metamorfoses


Columbano Bordalo Pinheiro

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A língua e as francesinhas!

Leia~se (embora fosse necessária outra correção): 
Fazemos todos os dias francesinhas com o sabor  e qualidade 
de 40 anos - a fazê-las tão deliciosas!

Bom apetite!

terça-feira, 2 de junho de 2015

Momentos libertadores


LIBERTAÇÃO
E porque o teu coração encerra
a saudade do mar e a saudade da terra
- tua ilha é grande.

E porque teus sentidos traçam norte e sul
e traçam leste e oeste norte e sul
- tua ilha é grande.

E porque tens os olhos virados para o azul
para lá do azul e para cá do azul
- tua ilha é grande.

E porque teu sangue vive o destino de tantas raças
no mesmo latejar de ansiedade e resignações dores alegrias e desgraças
- tua ilha é grande.


                                                                           Manuel Lopes (poeta cabo-verdiano)

domingo, 31 de maio de 2015

Aproximação



sábado, 30 de maio de 2015

"Vem-nos à memória..."

Os poetas também nos guiam, mesmo que digamos que não.

E, por isso, vêm-me à memória algumas frases (atualmente) comuns:

- Professora, não posso ir à visita de estudo porque os meus pais estão desempregados.
- Talvez o aluno não tenha razão, mas como a mãe se queixou...
- Não ando com cabeça, os meus pais discutem muito e estão a separar-se.
- O meu filho nunca mente.
- Estudar duas horas por dia? Ó setora, tenho mais que fazer!
- Não sei se o meu filho estuda ou não, o que é certo é que está sempre no computador!
- Se não fossem os colegas da turma, o meu filho seria bem melhor!
- Não tenho amigos na turma, porque são fingidos: os setores não os conhecem.
- Eu depois faço os exercícios no Centro de estudos.
 - ...

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Os provérbios são como as cerejas!



A homem farto as cerejas amargam.
As palavras são como as cerejas, vão umas atrás das outras.
As conversas são como as cerejas.
A mulher e a cereja para seu mal se enfeita. 
Em maio, comem-se as cerejas ao borralho.



segunda-feira, 25 de maio de 2015

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Vi o documentário e gostei


O documentário que vi tem por título Pára-me de repente o pensamento, do documentarista Jorge Pelicano. O título foi colhido de um poema de Ângelo de Lima, poeta com textos publicados na revista ORPHEU - introdutora do Modernismo em Portugal (1915).

Ângelo de Lima, poeta e pintor,  esteve internado no hospital psiquiátrico de Conde Ferreira, no Porto, onde o filme foi realizado.
.

Ao longo de uma hora e meia, ouvimos as conversas de alguns pacientes, enquanto passeiam na alameda do hospital. Uns riem, outros esmiúçam  o que sentem, o que pensam, o que veem, o que aconselham...

Quase todos fumam, bebem café, falam de si com a verdade atormentada da doença mas não loucura, como alguns fazem questão de lembrar. 
Há diálogos de pureza quase hilariante; outros que geram silêncios, outros que atingem as profundezas da alma humana, seja ela considerada normal ou não.

E, neste contexto, surge um ator - Miguel Borges . que se instala, por umas semanas, no hospital para preparar uma representação, com a colaboração dos pacientes daquela comunidade de saúde mental.  Também fuma, também bebe café e sobretudo ouve muito mais do que fala. E criam-se laços e empatias. O ator - o Miguel - ouve muitas histórias, enquanto a chuva cai com grossa intensidade.
Era inverno. Estava frio e as camélias aguentavam as fortes chuvadas.

 Quando passar na VCI, ao lado do Centro Hospitalar Conde Ferreira (criado em 1883), lembrar-me-ei dos doentes que vi no filme, que vive(ra)m no edifício, que se apaixonam (como Rosa que está sempre ao lado do namorado, ainda que silenciosa), que sentem alegrias e tristezas, embora lhes "pare muitas vezes o pensamento", tal como referiu Ângelo de Lima no poema que é ensaiado nos pátios do hospital  quando o céu abranda, o dia clareia e o ator acelera o movimento:


Pára-me de Repente o Pensamento

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.

Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.

Ângelo de Lima (1872/1921), in 'Antologia Poética'