sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Diário de Mariana



Querido diário,
Como é sexta-feira e vou estudar no fim de semana, quero contar-te, querido diário, uma aula muito fixe de hoje.
Um professor da turma teve de faltar e outra setora veio ubstituí-lo.  Era tão bom quando o dia 1 de novembro era feriado e podíamos ficar em casa, ir ao cemitério com a família ou fazer outras coisas.
Também não compreendo por que é que não podemos ficar sozinhos quando não temos aula. E isso acontece tão raramente. Os professores não faltam, pelo menos os meus. São daquelas coisas a que não acho piada nenhuma:  os adultos pedem (quando pedem, é claro!) a nossa opinião, mas depois fazem como melhor entendem. E parece que não confiam em nós; temos de estar sempre acompanhados como se fôssemos criancinhas.
Na última aula, já tínhamos combinado fazer uma ficha de revisão e depois podia-se tocar viola. Eu ainda pensei: se calhar, a professora diz isto, mas vamos é estar sempre a dar matéria. Gostei que tivesse cumprido.
A viola era da Ana, mas quem começou a tocar foi o Álvaro. Ficámos todos caladinhos, como a professora gosta, e ele tocou mesmo bem.
Depois, o Carlos leu duas pequenas histórias muito engraçadas, com o seu vozeirão, acompanhado também à viola.
Alguns de nós ainda se conhecem um bocadinho mal e reparei que na turma há muita gente que gosta de música. A Ana não queria tocar, porque dizia que tinha vergonha, mas depois cantou e todos batemos palmas. O Hugo até disse: curto totil desta música. A setora pediu-lhe para ele repetir e até tomou nota. O Hugo disse logo: Já sei que vai aproveitar esta frase para um exercício. Ele não sabia era que eu tenho um diário e quem ia falar disso era eu.
Eu acho que devia haver mais aulas como esta  para todos mostrarem que sabem fazer muita coisa e que, mesmo assim, podem ser bons alunos.
Pareceu-me que a setora ‘tava contente e até acompanhou algumas músicas, apesar de ter pouco jeito para cantar. Pelo menos não estava rouca, felizmente, porque isso deve ser uma grande seca para quem dá aulas. Eu vi que ela escreveu, no caderninho, uma das músicas que cantámos: Forever young. Não sei explicar muito bem, mas este título deve ser muito importante para os professores.
Agora vou estudar para o teste. Tem de ser. A minha mãe já me mandou desligar o telemóvel, mas se me lembrar de alguma música da aula de hoje, até me pode ajudar.
Um abracinho
Mariana


Uma história com um livro dentro



                                                Imagem da net


A tangerineira
    Era verão. Os dias amanheciam já quentes e as tardes tornavam-se abrasadoras. A Ana estava de férias e adorava passar as tardes a ler debaixo da sua árvore preferida: uma tangerineira enorme e de copa frondosa, que, no inverno, se enchia de frutos doces e sumarentos e, no verão, amaciava com a sua sombra as tarde escaldantes na aldeia. 
    Depois do almoço, depois da cozinha arrumada, enquanto a mãe dormia a sesta, a Ana sentava-se à sombra da tangerineira a ler. As leituras sucediam-se, e nas páginas do livro sentia-se a frescura das folhas verdes da tangerineira. E as personagens da história sentiam-se também protegidas pela sua sombra.
    Mas um dia a árvore secou. Era já muito antiga e muito velhinha. Foi preciso cortá-la, ficou só o tronco grosso e abandonado. A Ana teve de procurar outras sombras no quintal para poder continuar a ler naquelas tardes quentes de verão, mas não havia nenhuma que se assemelhasse aos braços protetores da sua tangerineira. A ameixoeira tinha folhas finas e pequenas; a figueira, largas e recortadas. O sol lançava com facilidade os seus raios sobre as páginas dos livros. As personagens queixavam-se, encolhiam-se, franziam o sobrolho àquela luz que as inundava. A Ana não tinha como as proteger.
  Os anos foram passando, a menina cresceu, morou noutras casas sem tangerineiras que abrigassem as personagens das histórias que continuou a ler. No lugar onde existia a sua árvore preferida, nem o tronco sobreviveu; foi arrancado pelos braços fortes do cunhado, que agora habita a casa. Nesse espaço florescem rosas de todas as cores, que cheiram a livros e têm a frescura das folhas verdes da tangerineira.    

Maria da Glória Poças  

A velha que tinha cinco gatos



 
Cybele Chaves


Era uma vez uma velha que tinha cinco gatos. Percorriam-lhe a casa de lés a lés. E por que não? Eram da casa e como se fossem da família. Entendiam tudo: o bom humor da dona e também os momentos de má disposição que também aconteciam. Não eram muito frequentes, mas a velha ralhava-lhes às vezes quase sem razão, porque não o podia fazer com os políticos nem com os familiares que poucas vezes a visitavam. Se dissesse alguma palavrita mais azeda, então é que nunca viriam.
 A meio da manhã e ao fim da tarde, arranjava sempre umas horinhas para ler. Às vezes, dormitava e deixava cair livro das mãos, já enrugadinhas, mas voltava a abri-lo sem nunca se esquecer da página, porque as palavras lidas eram como se as ouvisse pronunciadas.
Andava a ler o primeiro volume de Os Gatos de Fialho de Almeida. O último livro que tinha lido tinha sido Cão como nós, um livro de contos de Manuel Alegre. Requisitar livros na Biblioteca Municipal era um dos seus grandes prazeres.
Depois de tratar dos gatos, saía quase sempre no início da manhã. Gostava de caminhar um pouco, de ver as pessoas habituais, de entrar no café e sentir o cheiro do pão com manteiga, de ir ao mercado para ver as cores dos frutos e hortaliças…
Ah, também gostava de ouvir rádio enquanto estava em casa. Fazia-lhe lembrar o conto “Sempre é uma companhia” de Manuel da Fonseca que também já tinha lido.
Até os gatos já se tinham habituado à música e às palavras através da rádio. A pensão de sobrevivência era baixa, a reforma também, mas ia dando para pagar a água, a luz, o telefone, os medicamentos, os legumes, um peixinho de vez em quando.
Um dia, chegou a casa com o saquinho de compras habitual. Pousou tudo, guardou o que tinha a guardar e preparava-se para a leitura do fim da manhã. Ligou o rádio e logo ouviu a notícia de que em cada apartamento só poderia haver quatro gatos.
A velha, que tinha cinco gatos, sempre se habituara a levar a sério o que ouvia, porque achava que palavra dada devia ser cumprida. Às vezes, desconfiava e apetecia-lhe não acreditar nem levar a sério, mas era difícil mudar depois de velha. E não velhinha, como detestava ouvir de si própria. Só poderia ter quatro gatos? Dos cinco, qual teria de afastar de casa? Como seria possível se eram como filhos de quem os pais não são capazes de se separar?!
Até sentiu uma dor no peito quando ouviu a notícia. Olhou para os bichanos e começou a chorar. Nem conseguia ler nem concentrar-se. Era doloroso pensar que gato teria de abandonar o seu apartamento.
Não conseguia escolher. Resolveu até adiar a decisão, dizendo a si própria que o tempo se encarrega de trazer soluções.
Ora, no dia seguinte, a velha saiu para o seu passeio matinal e cruzou-se com outra velha que vivia numa casa grande e com quintal e era generosa para com os animais, mais até do que com as pessoas. Pararam, afastaram-se o mais possível da rua, onde passavam carros nervosos e apressados, e começaram a conversar. Daí a alguns minutos, um dos gatos já teria para onde ir: para a casa grande e com jardim.
Quando a velha que tinha cinco gatos chegou a casa, olhou-os e, embora lhe custasse muito, escolheu um: o mais robusto e brincalhão. Saberia defender-se melhor do que os outros. Tinha ficado acordado que iria lá visitá-lo de vez em quando.
Passados dias, a velha, trémula, foi buscar a caixa que utilizava para levar os gatos ao veterinário. Tentou enganá-lo com biscoitos, mas o bicho não queria entrar e mostrou os dentes zangados como um pequeno tigre. A velha esteve quase a desistir, mas teve medo que lhe levassem o gato de casa e assim saberia ao menos onde ele estava.
Quando ouviu a campainha da casa para onde estava a ser levado, o gato começou a agitar-se e logo a velha abriu a tampa para o acalmar. De repente, o gato mexeu-se tanto que a caixa caiu e o bicho desatou a fugir na direção da sua casa de sempre. Como não estava habituado a andar na rua, perdeu o tino, não encontrando a direção certa e eis que se ouve uma travagem de um carro, que logo retomou a marcha, deixando atrás de si o gato… já morto.
A velha gritou, chamou por alguém e apareceu um homem dizendo que era normal porque todos os dias ali morriam gatos. Ofereceu-se para o retirar da rua, mas de certeza, afirmava ele com fria segurança, nada havia a fazer. O melhor era a senhora ir para casa e esquecer o assunto.
Quando a velha chegou a casa, nem podia falar. Nem chorar. Sentou-se a olhar em silêncio os quatro gatos que restavam. Um aninhou-se aos seus pés, outro sentou-se no colo, outro nas pernas e o outro foi apoiar-se no peitoril da janela, olhando para a rua. Pousado, junto da janela, estava o livro de Fialho de Almeida, servindo para o gato ficar mais alto e observar melhor a rua.
Nesse dia, a velha morreu. Os vizinhos repararam porque deixaram de a ver nas manhãs  seguintes. Os gatos, à janela, pareciam chamar por alguém.
As vizinhas ainda falaram dela durante uns tempos, parando, respirando fundo e dizendo coitada muitas vezes. Foram elas que levaram os quatro gatos para a casa grande e com quintal.
Quanto à velha, nada mais havia a acrescentar: era velha, era pobre e tinha-se cumprido a lei!