segunda-feira, 9 de abril de 2012

As trepadeiras cruzam-se no Céu


Tal como cães

Há dias, ouvi que uma mulher idosa foi mortalmente colhida numa autoestrada. No entanto, o acesso a peões foi considerado impossível. Nesse mesmo dia, ouvi uma atriz  referir, com revolta, os velhos que são deixados nas estradas. 
Lembrei-me dos cães que são abandonados nesses espaços  de alta velocidade. Para não mais regressarem.
Os velhos. Tal como cães.

Todos os dias, concluimos coisas e começamos outras


Isto passa-se com as pequenas coisas ou com tarefas de maior relevância. Dizemos: hoje, vou fazer esta parte; depois, começo outra. É como ir arrumando algumas gavetas. E como é bom quando se conclui a arrumação e aquele espaço fica mais organizado. Até se encontram coisas que há muito se julgavam perdidas.
É como pôr nova terra num canteiro para nascerem novas flores.
Os dias são ciclos que vamos mantendo, concluindo coisas e reiniciando outras. E, neste processo, é mágico olhar à nossa volta e ver imagens que também julgávamos perdidas.
Ainda que saibamos que há sempre gavetas que continuam por arrumar.

Um brinde aos "noivos"

Brindámos aos noivos de há sessenta e quatro anos. Nesse ano, no dia 8 de abril, casaram-se. Ele, elegante, de fato preto; ela, elegante também, de fato branco e um ramo de jarros de mimosa brancura. 
Foram viver para uma casa pequenina. Não perguntei, mas de certeza que havia lugar para flores. Nem que fosse em vasos.
Gosto de ver a fotografia desse dia em que os meus pais se casaram. Ambos jovens e risonhos.
Ontem, brindámos ao seu casamento de mais de seis décadas. 
Eles falaram da vida que iniciaram em comum com muito poucas coisas. 
Já ficou combinado: quando celebrarem sessenta e cinco anos de casados haverá festa. Oxalá continuemos todos a sorrir, mesmo com as diferenças que vão vincando os rostos.

domingo, 8 de abril de 2012

PÁSCOA


Hokusai 
  
Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.

Miguel Torga: Poesia Completa

 

sábado, 7 de abril de 2012

Os meus óculos partiram-se e o mundo ficou menos nítido

Mas será que o mundo está menos nítido ou será da falta dos óculos?
Pus uns óculos mais antigos que às vezes utilizo, porque ainda vejo bem com eles. Ou melhor, via, porque, apesar de o mundo se tornar mais nítido, ainda tem pouca nitidez.
Que chatice, em ano sem subsídio, vou ver de comprar novos óculos.
Mas será que o mundo está baço apenas porque não vejo bem sem óculos?
No entanto, estou a escrever com os óculos que usei durante uns anos.
Será que o mundo foi ficando mais baço ou o problema é só da minha vista?
Não posso responder claramente porque parti os meus óculos.
Hoje mesmo, vou tentar arranjar novos óculos.
Na esperança de ver que o mundo não perdeu nitidez e o problema é  só da minha vista.
Será?

Um dia



 Monet
              Um dia, mortos, gastos, voltaremos

              A viver livres como os animais

              E mesmo tão cansados floriremos

              Irmãos vivos do mar e dos pinhais

              

              O vento levará os mil cansaços

              Dos gestos agitados, irreais

              E há-de voltar aos nossos membros lassos

              A leve rapidez dos animais.

              

              Só então poderemos caminhar

              Através do mistério que se embala

              No verde dos pinhais, na voz do mar,

              E em nós germinará a sua fala.



Sophia de Mello Breyner

sexta-feira, 6 de abril de 2012

PIETÁ

Pietá -Michelangelo

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.

Miguel Torga, Poesia Completa,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, pág. 117.

Cafezinho e lapso


Ele é um jovem americano que está a aprender português. Perguntou: porquê cafezinho? É menos quantidade de café? Foi-lhe explicado que é um diminutivo habitual quando dizemos certas palavras em sinal de carinho.
Ele perguntou (julgo com ironia) se se aplicava a outras palavras: aeroportozinho, pilotozinho, chãozinho… Deu risota.
Ontem, uma das palavras mais repetidas nas televisões era lapso – a propósito do prolongamento do período em que os funcionários públicos não vão receber subsídio de férias nem de Natal. A maioria, é claro, porque prevê-se que instituições como a TAP e a CGD continuem como dantes. A este propósito, na altura da decisão da manutenção dos subsídios, alguns ministros disseram que não se tratava de regime de exceção mas de uma adaptação. Também deu risota, mas com riso amarelo, como é bom de ver.
Voltando à palavra lapso, se o jovem americano a conhecesse, talvez perguntasse se se podia dizer lapsozinho!
Se fosse ao Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, veria que a palavra provém do “latim lapsus ‘escorregadela’. 1. Ato de escorregar, de cair em falta. 2. Falta, erro, engano, por distração, descuido ou esquecimento. Falha”…
Os governantes que utiliza(ra)m a palavra ‘lapso’ insistem, imaculadamente, que ter dito que os subsídios não seriam aplicados  durante dois anos foi um lapso. Um erro? Não, um lapso? Um engano? Não, um lapso. Uma falha? Não, um lapso.
Os humoristas vão ter assunto. Nós, os funcionários públicos de brandos costumes, vamos comentando estes erros enquanto tomamos o nosso cafezinho.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Se às Vezes Digo que as Flores Sorriem

 Renoir

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXI"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Seleção (natural?)




Em grande grupo





Entre a segurança e a ousadia


Quase todas as cores


Sobre um rio carregado


Sob um céu pesado


quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Ovo

(Imagem retirada da net)
Nasruddin ganhava a vida a vender ovos.
Um belo dia passou alguém pela sua loja e disse: «Adivinhe o que trago na mão».
«Dê-me uma pista, pelo menos», disse Nasruddin.
«Pois dou-lhe várias e até muitas», disse o outro. «Tem forma de ovo, tamanho de ovo, aparência de ovo; tem cheiro de ovo, tem gosto de ovo e, por dentro, é branco e amarelo. É líquido antes de cozido… E é a galinha que o põe!»
«Ahaaa! Já sei!», exclamou Nasruddin: «É uma espécie de bolo!»
Quantas vezes também nós não entendemos o óbvio!
Falta-nos talvez a simplicidade e a atenção plena ao presente.
Anthony de Mello
O canto do pássaro
Lisboa, Ed. Paulinas, 1998
(Adaptação)
Texto enviado por: 
 http://contadoresdestorias.wordpress.com







Por falar em ovo…
Quando eu era pequena, a minha mãe criava galinhas e coelhos. Quando não tinha ovos que chegassem, eu ou a minha irmã íamos a duas casas de lavoura, na nossa aldeia, comprar os ovos. Ensinaram-nos a dizer: ovos para botar. Aqui, o sentido de botar era chocar e deles saírem novos pintos.
De ambas as casas tenho recordações.
As casas de lavoura tinham habitualmente os currais, a que chamávamos aidos, por baixo e no piso de cima ficava a parte da habitação.
Ora, quando chegávamos a uma das casas, chamávamos pela dona – era uma senhora muito alta, muito magra  que usava sempre saias compridas e um avental – e ela vinha à janela. Nós dizíamos que queríamos ovos. Ela desaparecia da janela e daí a nada tinha nas mãos uma cestinha com os ovos que fazia descer, cuidadosamente, por uma corda fina. Nós, em baixo, recolhíamos os ovos, colocávamos o dinheiro na cestinha que era de novo içada.
Da outra casa recordo a graciosidade da senhora que nos vendia os ovos, em contraste com a palha seca, o estrume, as hortaliças cheias de terra, os bois a chegar, pesados e tristonhos…
Dos ovos nasciam pintos que cresciam e se reproduziam, através de novos ovos. Também davam uma bela canja, arroz de frango, um bom assado a perfumar muitos domingos…
É curioso que deles no prato não me lembro, mas dos ovos e da capoeira nunca esqueci.