sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Instantâneos


A trepadeira do muro enleou-se no silvado

E os picos estranharam a maciez das outras folhas

A ameixoeira caiu.

Não aguentou tantos frutos.

O tronco estava frágil e o vento foi mais forte

A romãzeira tem flores laranja

Que dão romãs rosa

Por entre as roseiras vermelhas.

A flor de laranjeira

É neve perfumada suspensa nas folhas em concha

Os narcisos abrem-se no início de Fevereiro.

Eu penso: são velas acesas para celebrar o teu aniversário

Descobri a olaia

Quando um menino a pôs num poema.

Olhai-a, dizia ele no espontâneo haiku

A relva pisada ficará menos macia

E precisará de mais chuva

Para poder olhar o céu

As boninas eram flores pequeninas

Que enfeitavam os muros da minha infância.

Com pampilhos fazíamos colares

perfumados e macios

que faziam cócegas no pescoço

A rosa vermelha trepava no muro cinzento

Em busca de luz mais clara

A nossa casa tinha uma laranjeira

Dava laranjas e sombra em dias de Verão

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A menina-princesa


Era uma vez uma menina que também era princesa.

Tinha um nome muito comprido. Chamava-se Isabel Ana Lúcia Inês Mafalda Mariana Sofia Leonor Maria.

Como demorava algum tempo a dizer, muita gente chamava-lhe Maria que era o último nome, simples e bonito. Mas também é muito comum. Por isso se diz que há muitas Marias na Terra. E princesas só há algumas.

Outras pessoas diziam a princesa, a menina, se faz favor, sua alteza real…

Porém, às vezes, diziam-lhe Olhe lá ou Olha lá. Mas, francamente, a menina- princesa não gostava nada que a tratassem assim. Parecia que estavam a atirar-lhe uma pedra afiada.

Não é que ela fosse convencida, tivesse a mania das grandezas ou se sentisse superior aos outros. Nada disso.

É verdade que nunca esquecia que era princesa. O palacete onde vivia era grande, confortável, com loiças muito fininhas e adornos que tinham vindo de continentes estranhos e distantes. Tinha também um grande jardim com muitas camélias que davam muita sombra no verão e flores de muitas cores no inverno.

A avó, uma princesa já muito velhinha e que usava sempre um anel azul, chamava-lhes japoneiras porque há muitos muitos anos as sementes tinham sido trazidas do Japão para Portugal.

Um dia, a menina-princesa deu um passeio pelos jardins do palacete e começou a contar as diferentes variedades de camélias pelos dedos da mão, mas eram tantas que lhes perdeu a conta. Havia camélias brancas, rosa clarinho, rosa forte, vermelhas, matizadas… Umas tinham poucas pétalas, outras pareciam rosas…

Decidiu, então, olhar e observar sem pressa. Como ela gostava de fazer com as magnólias no final do Inverno e com as buganvílias no Verão. Outro dia, traria um caderninho para desenhar o que os seus olhos viam.

Descobriria até, mais tarde, que este trabalho a ajudava a limpar a alma, como a mãe dizia a propósito do mar.

A menina princesa era também muito responsável e muito estudiosa. Tinha resultados muito bons na escola onde andavam outros príncipes e princesas e muitos meninos que não eram de sangue azul, como se costuma dizer.

Como a menina-princesa gostava sempre de saber mais, aprendeu que se diz que as pessoas são de sangue azul, porque, como as famílias nobres não iam para o campo, a pele ficava mais clarinha, fininha e a cor das veias notava-se melhor.

Se calhar, estão a pensar que as qualidades da menina-princesa se deviam a ter nascido num berço de ouro com muita gente a prestar-lhe atenção.

De certeza que isso a tinha ajudado, mas posso garantir-vos que a menina-princesa era amiga, responsável e estudiosa. Ah, era bonita e um bocadinho vaidosa. Gostava de andar sempre de cabelo bem sedoso e escovado. Também gostava de roupas bonitas, embora não desbaratasse o dinheiro em luxos desnecessários.

Um dia, a mãe reparou que a menina-princesa andava triste e com vontade de chorar. Começou a falar com ela.

- Que tens, filha? Por que andas triste?

- Não é nada, mãe.

- Ai isso é que é e gostava que me dissesses o que te preocupa para eu te poder ajudar.

- Não é naaada, acentuou a menina-princesa, mostrando que tinha vontade de acabar o diálogo, porque às vezes não gostamos de falar de coisas que nos inquietam.

- Se não quiseres falar agora, pode ficar para depois, mas se te calares, não resolves o problema.

A menina princesa demorou um bocadinho e disse então que tinha chegado à conclusão que toda a gente só gostava dela porque era princesa e não por ser menina.

E contou que muitas vezes as pessoas se aproximavam dela só para pedirem coisas e não para falarem naturalmente como ela gostaria. Não a convidavam porque achavam que não tinha tempo ou não queria que a incomodassem. Quando ela dizia alguma graça, as pessoas não achavam piada ou riam-se muito só para lhe agradarem. Quando ela dizia que não, as pessoas zangavam-se e achavam que ela estava a desprezá-las.

Gostava de ser natural como outros meninos e meninas e achava que não podia porque era princesa.

E a menina-princesa confessou-se triste, muito triste. Para mais, umas colegas haviam-lhe dito na escola que os professores gostavam mais dela porque era princesa. Não falavam das horas que ela passava a estudar para ter as lições sempre em dia.

A mãe ouviu-a com atenção e disse:

- Filha, tu és uma boa menina e assim deves continuar. Toda a gente encontra pedras no caminho. Às vezes, as pessoas atiram-nas sem querer ou para se verem livres delas.

- Mãe, era muito melhor não ser princesa, porque seria mais feliz.

- Não, minha filha, porque não deixarias de ter pedras no teu caminho.

Não sei muito bem como acabou esta estória. Ou se terminou, porque na vida, seja-se só menina ou seja-se também princesa, as histórias continuam sempre.

O que sei é que, embora não seja nada mau ser princesa, também não deve ser tudo muito bom.

Que o diga a Isabel Ana Lúcia Inês Mafalda Mariana Sofia Leonor Maria.

Ai que até fiquei cansada de dizer o nome.

Pior seria se se chamasse Procópia.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

MARESIA


Aqui estou em frente ao mar. Nunca pensei chegar até cá. Há setenta anos que vivo na minha aldeia de Trás-os-Montes. Lá nasci, lá vivi sempre e é lá que quero morrer.

Quando era pequena, ouvia a minha mãe dizer que, na cidade, havia um mar de gente. E também falava do mar de água que ela dizia ficar muito muito longe. Demorava tanto a dizer a palavra que parece que ainda oiço aquele eco: looooooonnnge. Falava também do grande oceano.

Senti sempre alguma curiosidade por saber como era o mar que parecia tão grande e distante assim como o mar de gente. Nunca tive tempo ou não houve oportunidade. Casei muito nova. Tinha a família, o campo, os animais… E também montanhas com neve ou calor.

Há muitos anos que os meus filhos saíram da aldeia. Foram abandonando a terra enquanto se faziam homens. Como todas as outras pessoas mais novas e com força, vieram trabalhar para longe e tudo foi morrendo aos poucos. Ficaram os velhos nas casas cada vez mais velhas e escuras. A aldeia, tal como as pessoas, envelheceu. Ficámos todos mais fracos e sós. Como as nossas casas.

Há muito tempo que os meus filhos queriam que eu conhecesse a cidade onde trabalham e que eu visse o mar. Acabei por vir, porque não gosto de dizer que não aos meus filhos. Já bastou o tempo em que não lhes podia dar os brinquedos que pediam. O que valia é que gostavam das histórias que eu lhes contava. Olhava à minha volta e logo inventava um continho como eu gostava de lhes dizer. Lembro-me da história do milho cor de rosa, da cereja-brinco-de-princesa, da castanha que gostava de apanhar sol, da geada endiabrada…

Agora aqui estou, em frente ao mar e só me apetece olhar e ficar calada. A luz é tão forte que mantenho os olhos quase fechados. Parece festa, porque estou a descansar e vejo muita gente com ar feliz. As pessoas não parecem ter pressa. A esta hora, se estivesse na minha aldeia, teria de recolher o gado. Às vezes nem reparo nas cores do pôr do sol. E, no entanto, há turistas que ficam na estalagem que há na aldeia, atraídos pela paisagem do fim do dia, como se fosse íman para os olhos.

Perto do mar parece que oiço tudo melhor. E vejo melhor também. O cheiro é fresco e azul.

O barulho das gaivotas é que é agoirento. Parece que chamam ou gritam! Fazem- me lembrar uma rapariga da aldeia que decidiu emigrar. Dizia que não sabia como as pessoas podiam viver encarceradas no meio dos montes. Algum tempo depois regressou. Deixou crescer os cabelos crespos e punha-se a cantar canções estranhas até de madrugada, à janela.

O mar é muito mais largo do que eu pensava. Faz muito barulho e as ondas, quando saltam, são mais altas do que os rochedos. A espuma parece neve no Inverno da minha aldeia.

Quando abro os olhos e vejo este mar cheio de luz, sinto-me pequenina. Parece que me cega. Lembro-me da minha terra que me parece ainda mais distante. Não me apetece regressar por enquanto. O mar não pode ser visto a correr. É como os montes. Quem os olha só da estrada não os fica a conhecer nem os guarda na memória.

Olho para o mar e parece que estou a ver e a ouvir a minha mãe. Ela, uma vez, ensinou-me uma palavra que tinha ouvido de uma senhora da aldeia que tinha livros e uma casa à beira-mar. Essa palavra era maresia. Só agora a percebi melhor.

Também entendi melhor a voz antiga de minha mãe.

domingo, 21 de agosto de 2011

O príncipe e os brincos de princesa




Para o J. D.


Era uma vez um menino que gostava muito do que a Natureza nos oferece. Apreciava ver os caracóis, na sua marchinha lenta, com a casinha às costas; as corridinhas das formigas a desviar-se de uma migalha mesmo pequenina…

O menino também gostava muito de plantas aromáticas: hortelã, salsa, loureiro… limonete, tília…

O menino era muito curioso e observador. Queria saber o nome das flores, dos arbustos, das árvores… E como estava sempre de olhar bem atento, perguntava muitas vezes:

- Ó mãe, ó mãe… e logo vinha a questão.

- E alargava os destinatários:

- Ó avô…

Um dia, passou rentinho a um canteiro onde havia brincos de princesa muito redondinhos, com cores bem nítidas: roxo, vermelho claro... Os estames eram fininhos e aveludados.

O J. apanhou uma dessas flores e, observando-a, achou-a tão perfeita que procurou logo um copo com água para que não murchasse nem perdesse a sua beleza.

E reparou que todos os brincos tinham lugar no arbusto, apesar da quantidade. E nenhum parecia guerrear nem ficar zangado.

E, perto, havia outros brincos de princesa em forma de sino. Apetecia mesmo fazer dlim dlam dlim dlam…

E os diferentes brincos de princesa, baixinho, pareciam contar uma outra estória:

Era uma vez um príncipe muito bonito, muito simpático, muito curioso e também alegre e brincalhão.

O jovem príncipe vivia muito feliz no seu pequeno reino.

Tinha, sempre aberta, uma praia grande onde podia correr e saltar. O mar erguia-se em ondas de espuma branquinha. Bem perto, possuía uma casa sempre acolhedora donde podia ver as dunas e o pôr do sol. A escola que frequentava era bonita e toda a gente trabalhava com gosto e alegria. A família levava-o a passear e ajudava-o a compreender o que se passava à sua volta. Os amigos gostavam muito dele e tentavam responder às suas questões. Fazia experiências científicas e descobria sempre novas coisas, estivesse ele em casa, na escola, no Museu…

E ainda lhe pareceu ouvir:

És tão feliz no teu reino;

Vês sorrir a Natureza!

Como ela está em festa,

Pôs os brincos de princesa.